Celia à la carte / 'O Condimentar', uma coluna de Margarita Bernal
Há vozes que permanecem como o aroma de tamales pela manhã ou o toque de molho de tomate, cominho e sal que transforma um prato em algo memorável. Cem anos após seu nascimento, Celia Cruz, a Rainha da Salsa, continua sendo o ingrediente insubstituível na receita da nossa identidade latina.
Ela não se limitava a cantar: cozinhava com palavras, misturava metáforas como quem prepara um sofrito e derramava sua alma em cada acorde. Seu famoso grito, "Azúcar!" (Açúcar!), nasceu quando um garçom em Miami perguntou se ela queria seu café adoçado. Doce como melaço, ela respondeu: sim, com um "Azúcar!" tão sonoro que se tornou sua assinatura, aquela doçura que equilibra a amargura da nostalgia do exílio.
Suas canções oferecem um banquete de sabores: Molho de Tomate, Sopa Engarrafada, O Pescador, Sazón, O Herbalista Moderno, Açúcar Preto, Amendoim Torrado e muito mais. Celia transformou a culinária em melodia e o ritmo em vida.
Caminhar por elas é como abrir o livro de receitas da avó, em que cada verso guarda o sabor de Cuba, de todo o Caribe.
Há as sopas que abrem caminho quando chegam mais pessoas, o arauto da erva sagrada, a polpa de tamarindo – doce e azeda como um amor complicado – e os caranguejos frescos do pescador apaixonado.
Ele cantava sobre o herbalista com seus remédios mágicos, sobre perus engordados de esperança, sobre limão e hortelã para curar o amor, com aquela voz de cana e mel que transformava cada ingrediente em uma canção.
Ele nos ensinou que cozinhar é um ato de resistência, que preservar os sabores da nossa terra é manter viva a chama de quem somos.
Ele entendeu que comida não é só alimento: é memória, pátria, revolução num caldeirão. E também entendeu que a salsa não é só um ritmo para dançar , mas uma preparação que cozinha, tem sabor e exige o tempero de quem sabe o que faz.
Ao cantar a frase "uma xícara de carinho, uma pitada de páprica, mexa com ternura e dê muitos beijinhos", ela não estava apenas compartilhando sua receita de amor: ela também nos lembrava que o melhor tempero está na intenção, naquele toque secreto que só quem cozinha e ama com a alma sabe dar.
O tempo passa, e sua voz continua sendo o tempero indispensável de qualquer festa, o tempero que aviva os sentidos. Porque a Guarachera de Cuba não foi embora: ela permaneceu em cada refeição compartilhada , em cada gole de rum que tomávamos cantarolando.
A vida, assim como a boa culinária, exige ritmo e fogo. E cada vez que gritamos "açúcar!", celebramos que existem legados que nunca expiram, que existem vozes que fazem parte da herança da humanidade, tão necessárias quanto o nosso pão de cada dia.
Obrigado, professor, por iluminar nossas vidas. Por nos lembrar que somos o que comemos, o que cantamos, o que dançamos, o que compartilhamos. Por nos ensinar que viver sem sabor não é viver e que a vida, de fato, é um carnaval. Bom apetite.
eltiempo

