“A natureza nasceu relativamente perfeita e equilibrada; nós, ao longo do tempo, é que a desequilibrámos. Estamos agora a tentar reconstruir o que nós próprios estragámos”

A agricultura regenerativa está a ganhar tração em Portugal. Esta forma de produção, que se foca no equilíbrio da natureza e na saúde do solo, e que não utiliza quaisquer produtos químicos de síntese (ao contrário da agricultura biológica, que pode fazê-lo desde que esses químicos também existam na natureza), vai ser apresentada e debatida este sábado, 31 de maio, na 2ª edição do Regenerative Wine Fest.
Os principais objetivos do evento, que vai contar com 14 produtores de vinho que praticam agricultura regenerativa, passam pela partilha de conhecimento e pela informação aos consumidores, explica Luís Serrano Mira, proprietário da Herdade das Servas, anfitrião do acontecimento. “É uma visão diferente da própria vinha. Não é aquilo que o meu pai fazia”, diz o produtor vitivinícola. “O ecossistema está desequilibrado e nós temos de o reequilibrar.”
O Luís pertence à 13ª geração da família a produzir vinho. Porquê esta aposta da Herdade das Servas na agricultura regenerativa? E diria que é uma revolução na forma de produzir?Não é possível continuar a fazer da mesma forma num planeta sobrecarregado com pesticidas, herbicidas e outras coisas terminadas em “idas”. Tem de existir uma mudança de atitude, e entendo que devo liderar essa mudança. Por norma, são os agricultores com menor dimensão que a lideram. A Herdade das Servas, com os seus 350 hectares, se calhar não seria o projeto que mais facilmente lideraria este tipo de revolução, mas… Na verdade, não gosto muito da palavra revolução. É mesmo uma mudança de atitude. Nós não podemos continuar a matar os [insetos e outros animais] auxiliares quando eles nos fazem falta, não podemos continuar a desequilibrar a natureza…
Pode dar-nos exemplos dessa mudança de atitude? Quais são as principais diferenças na forma de tratar a vinha?Se olharmos para uma vinha do passado, vemos que não existia uma única erva. A vinha era muito bonita, toda arranjadinha, parecia uma paisagem idílica. Hoje, uma vinha, por exemplo, na Herdade das Servas, está cheia de ervas. As pessoas acham que não temos dinheiro para cuidar da vinha ou que somos uns desleixados de primeira. Parece que a natureza entrou dentro da cultura, o que pode levar a algum antagonismo. É uma visão diferente da própria vinha. Não é aquilo que o meu pai fazia. E eu próprio também matava as ervinhas com herbicidas. Obviamente que não matava só as ervinhas, também estava a matar os auxiliares que estavam nas ervinhas. Hoje, fomentamos o aparecimento de biodiversidade. Aliás, fazemos culturas próprias para que muita microbiologia se possa desenvolver no solo.
Ou seja, o método passa por equilibrar o ecossistema.Procuramos equilibrar o ecossistema. O ecossistema está desequilibrado e nós temos de o reequilibrar. A natureza nasceu relativamente perfeita e equilibrada; nós, ao longo do tempo, é que a desequilibrámos. Estamos agora a tentar reconstruir o que nós próprios estragámos.
Que impactos positivos já notou no ecossistema ou na regeneração do solo?No outro dia, estava a trocar umas opiniões com o nosso viticultor e enólogo, e ele observava que este é um ano de muita pressão, com uma série de doenças devido à humidade, ao calor, a várias situações. E as plantas, hoje, já se mostram muito mais resilientes, fazem os seus combates. Conseguimos fortalecer o sistema imunitário das plantas, a tal ponto que são elas a combater as suas próprias doenças. É aí que temos de atuar. As plantas não são muito diferentes de nós, enquanto seres vivos. Todos precisamos de um bom sistema imunitário para responder às agressões externas. Basicamente, o que nós fazemos às plantas é fortalecer-lhes o sistema imunitário através das raízes, que é o estômago delas.
Consegue ter os mesmos níveis de produção com estas técnicas?Não podemos partir das mesmas premissas, não. Mas a Herdade das Servas já não estava nessas premissas. Dos 350 hectares, só 20% são irrigados. Portanto, a nossa expectativa de produção por hectare é diminuta. Diria que andamos, em termos médios, na ordem dos 4 mil quilos por hectare. Portanto, não, não temos superproduções por hectare.
Qual é a média numa produção convencional?O dobro: 8 mil por hectare. Mas não é produzir mais por hectare que me move. O que me move é valorizar mais os meus produtos, os meus vinhos, porque se os vinhos não forem valorizados, naturalmente, estou mais distante de ser uma empresa rentável, e a sustentabilidade económica não se pode perder.
Para ter essa sustentabilidade económica com menores produções precisa que os consumidores reconheçam e premeiem vinho produzido com práticas mais sustentáveis. Isso já acontece?Ainda existe muito greenwashing… O consumidor valoriza o que entende ou interpreta como sustentabilidade, mas muitas vezes essa sustentabilidade não é mais do que práticas sustentáveis ocasionais. O Alentejo tem um programa quase único no mundo, o PSVA [Programa de Sustentabilidade dos Vinhos do Alentejo], com 190 pontos muito rigorosos, e nós estamos certificados PSVA em toda a área. Isso é um bocadinho diferente de produtores que estão certificados em pequenas áreas. Mas não sei se o consumidor se apercebe dessa diferença. Temos de ser mais ágeis a comunicar…
Nota diferenças do consumidor nacional para outros consumidores, nomeadamente do Norte da Europa?Os jornalistas da Alemanha para cima procuram-nos com frequência para perceberem o que fazemos. Há uma avidez natural por parte do jornalismo de perceber como esta região é diferenciadora em relação a outras. Os nossos jornalistas não nos procuram tanto, penso que não por desinteresse mas, talvez, por desconhecimento.
A certificação PSVA ainda não tem, junto dos consumidores em geral, a visibilidade de outras certificações. Além disso, não existe uma certificação oficial para a agricultura regenerativa em particular. Isso é um problema?Pode ser um problema. Nós temos um sistema de validação de pares, ou seja, validamos as práticas uns dos outros. É um sistema relativamente informal, mas é eficaz. É desejável que, no futuro, exista uma certificação portuguesa que faça sentido, com as exigências a entrarem num caderno de encargos, porque isto não pode ser só dizer “fazemos isto, fazemos aquilo”.
A agricultura biológica tornou-se popular, em parte, pela sua simplicidade: é fácil transmitir ao público que não usa químicos sintéticos. A agricultura regenerativa é mais complexa, porque inclui uma série de métodos e técnicas diferentes. Há alguma forma simples de passar a mensagem para o consumidor comum?Há uma forma simples: as pessoas que praticam agricultura regenerativa procuram regenerar o berço da vida, que é o solo. A agricultura biológica (e nós estamos certificados também em biológica), não. É um meio caminho, até porque há algumas incoerências na legislação do biológico.
Que incoerências são essas? O facto de poderem usar produtos de síntese, desde que também existam na natureza?Empresas com muita capacidade de investimento no mercado estão a apostar no mercado biológico. Mas o nosso fim é abandonar por completo tudo o que são produtos de síntese, ou seja, o que é sintetizado em fábrica não é aplicado em agricultura ou viticultura regenerativa. Isso cria-nos algumas limitações, impostas por nós próprios, para podermos regenerar o solo. Um exemplo: para combatermos um fungo, podemos utilizar um extrato de cavalinha, que é a natureza que produz. Portanto, temos elementos naturais para fazer esses combates. Alguns, temos de fabricar, porque não estão disponíveis, outros, como este, são matérias extraídas por nós para adicionarmos ao solo.
As plantas, hoje, já se mostram muito mais resilientes, fazem os seus combates. Conseguimos fortalecer o sistema imunitário das plantas, a tal ponto que são elas a combater as suas próprias doenças
A agricultura regenerativa vai mais além do que a biológica?Os produtos biológicos, por estarem homologados para biológicos, não quer dizer que não contenham produtos estranhos à natureza. O biológico pode utilizar produtos de síntese. E há alguns cobres que têm alguma toxicidade, e no biológico utiliza-se muito cobre. Na regenerativa isso não pode acontecer. O pensamento maior em termos regenerativo é sempre a microbiologia do solo. Em termos de agricultura biológica, o pensamento é “como é que vamos curar a vinha para que ela produza sem ser em convencional?”. A microbiologia do solo não é defendida pela sistema biológico.
O que gostaria de ver acontecer nos próximos cinco ou dez anos, neste setor?Era importante acabarmos com alguma demagogia, porque a sustentabilidade é um chavão em que cabe tudo. Temos de ter algum cuidado. O consumidor é bombardeado com sinais, e muitas vezes esses sinais não correspondem à verdadeira prática. Até existe legislação forte, mas falta controlo. Se conseguirmos controlar o que é feito no setor agroalimentar, estamos mais perto de, enquanto consumidores, tomarmos as melhores decisões. Tem de haver um aperto maior às práticas implementadas no terreno.
Um combate mais ativo ao greenwashing, para evitar desequilíbrios competitivos?Nós só valorizamos algo quando compreendemos que aquilo é mesmo o que diz ser. A dúvida não traz valor. Para existir valor numa agricultura diferenciada tem de existir também quem controle. Devem existir mecanismos fortes de controlo àquilo que eu pratico. A partir desse momento, estamos todos mais perto de não termos greenwashing.
O Regenerative Wine Fest é uma forma de divulgar a mensagem para dentro e para fora? Ou seja, para convencer outros produtores a fazer o mesmo e, simultaneamente, dar a conhecer as vantagens da agricultura regenerativa ao público?O que quisemos, ao criar o Regenerative Wine Fest, foi liderar uma mudança de atitude. No primeiro ano, convidámos oito produtores, este ano já vamos ser 14 e espero que no próximo sejam mais, e isto quer dizer que há claramente pessoas a pensar neste modo de produção. Atenção que estes 14 são todos validados: a metodologia que empregam nas suas vinhas está validada pelos pares. Houve alguns que quiseram estar connosco e não foi possível, porque não conseguimos validar a metodologia. É importante a credibilização, porque se formos atrás daquilo que é feito genericamente – a comunicação andar à frente do que efetivamente se faz – estaremos a fazer aquilo que não se pretende, que é a fazer de conta que fazemos. E há muito faz de conta… Com o Regenerative Wine Fest, queremos sobretudo mostrar ao público em geral que temos uma metodologia alternativa, que não utilizamos pesticidas nem herbicidas sintetizados em fábricas como forma de exponenciar a produção, mas que, em vez disso, tentamos equilibrar a natureza de forma a extrairmos a melhor qualidade das uvas, e que o resultado é um vinho de maior qualidade.
Este é também um momento para troca de experiências e práticas?Exatamente. E ao mesmo tempo para arranjar forças. Estamos imbuídos do mesmo espírito, do mesmo objetivo. Quando erramos, temos o nosso par a dizer: “Eh pá, se calhar devias ter ido por este caminho.” E nós ajustamos. Ainda que o ponto de partida não seja igual para nenhum viticultor.
Gostava que na próxima edição já houvesse um selo oficial que ajudasse os consumidores a reconhecer nas prateleiras um vinho produzido desta forma sustentável?É preciso algum cuidado, porque o consumidor está cheio de sinais. Há um excesso de informação. Não sei se irá bater no selo, mas irá bater, sim, numa credibilização, num caderno de encargos que tenha de ser cumprido.
Em termos legislativos, o que mais poderia ser feito, seja a nível da União Europeia seja a nível nacional, para incentivar estas práticas agrícolas?É muito fácil: se desincentivamos o greenwashing, estamos a fomentar a criação de valor em modos alternativos. E, quando digo isto, não quero dizer que o regenerativo seja o único conjunto de métodos válido. Há várias metodologias, há muita gente que vai por outro, outros caminhos, que eu preconizo menos, mas que entendo. Mas o que faz sentido é combater o greenwashing. Criarmos legislação forte para que não seja dado valor a quem não faz nada. E isso eu vejo constantemente. Há muita gente a associar-se a símbolos… Por exemplo, não podemos ter um rótulo com uma joaninha e não se fazer nada. Quer dizer, se lá tem joaninha, o consumidor interpreta que é um produto bio ou mais próximo da natureza. Há sinais que deviam ser excluídos à partida, que quem não faz nada seja impedido de usar. E há muito produtor a ser imaginativo, a meter sinais daquilo que não fazem.
Visao