“Se o que prevalecer for a teoria das vidas sucessivas, vimos à Terra, temos uma determinada experiência de vida e depois não acaba tudo. É apenas um capítulo, a que se seguirá outro”

A RTP 1 tem estado a transmitir uma série documental intitulada Para Além do Cérebro (à segunda-feira, pelas 22h50) que aborda um tema delicado e, sobretudo, controverso: juntando as Neurociências e a Parapsicologia, “propõe uma reflexão profunda e científica sobre os limites da mente humana, desvendando os caminhos que interligam a Ciência e a espiritualidade”, anuncia o teaser. Um leigo dirá que se tenta ali, num trabalho de rara dimensão na TV portuguesa, patrocinado pela Fundação BIAL, com 16 episódios e depoimentos de 52 investigadores de prestigiadas instituições internacionais, explicar o paranormal. Mas esta entrevista destinou-se a saber o que pensam sobre o assunto os dois pilares da série: o médico Luís Portela, 73 anos, presidente daquela fundação, e o neurocientista Nuno Sousa, 57, da Universidade do Minho, coordenador científico do documentário. Nem um nem o outro desiludiram. Luís Portela, por exemplo, assumiu sem inibições o impacto que nele provocaram os resultados de estudos de uma equipa da Universidade da Virgínia sobre a evocação por crianças de supostas vidas passadas. Já Nuno Sousa (também membro do conselho de administração da Fundação BIAL) deixou logo claro um seu princípio, enquanto cientista e académico: “Quando observamos fenómenos sobre os quais não temos uma boa explicação, devemos, claro, ir à procura dela, seja qual for o tema que está por detrás e a dificuldade que gera, sobretudo quanto a preconceitos que alguns têm.”
Como se pode partir do princípio de que a Parapsicologia deixou de ser uma “pseudociência”, quando uma parte da comunidade médico-científica internacional continua a considerá-la assim?
Luís Portela (L.P.): A Ciência é um mundo em evolução – nunca parou, nem vai parar. Mas sabemos que, quando determinado ramo da Ciência se começa a desenvolver, por norma é difícil de ser aceite. Louis Pasteur era chamado de “professor micróbio”, porque as pessoas não acreditavam na teoria que ele defendia. Parece-me, pois, natural haver na Parapsicologia algumas dificuldades em evoluir, por muitas pessoas não acreditarem, acharem que não pode ser assim. Está a suceder na Parapsicologia o que aconteceu noutras áreas. Acresce que, na primeira metade do século passado, foram cometidos alguns erros crassos, algumas aldrabices, que se pagaram caro, com um descrédito grande desta área.
Que erros e que aldrabices?
Por exemplo, houve uns senhores que diziam que dobravam as colheres com o pensamento e depois verificou-se que aquilo eram truques. Alguns investigadores também tentaram fazer valer resultados que não eram assim tão sólidos como afirmavam.
Diria que a Parapsicologia já ultrapassou o descrédito que mencionou?
Sim. Há hoje um número crescente de cientistas, de origem diversa, focados no desenvolvimento da Parapsicologia. Estes investigadores congregam esforços e constituem equipas multidisciplinares que trabalham pelo esclarecimento das pessoas nesta área. E nós, na Fundação BIAL, testemunhamo-lo. No nosso Sistema de Apoios à Investigação Científica, o número de projetos que combinam as Neurociências e a Parapsicologia – que tem vindo sempre em crescendo – atingiu, em 2024, os 21% em termos de candidaturas e os 30% de projetos aprovados pelo Conselho Científico da fundação, presidido pelo professor António Damásio e constituído por especialistas de diversas nacionalidades. O que me parece um progresso claro.
Porquê?
O desenvolvimento científico e tecnológico no século XX foi fantástico, mas focou-se muito na materialidade. Fenómenos descritos desde a Antiguidade, que se enquadram na área da Parapsicologia, e que foram designados de mistérios, milagres e sei lá que mais, ficaram em absoluto para trás. A Ciência, de uma forma geral, não entrou aí. E, na nossa opinião, deveria ter entrado. Não há razão para não entrar. Por exemplo, na sua obrigação de procurar esclarecer tudo, ao serviço da Humanidade, entendo que a Ciência não se deve coibir de investigar a área da espiritualidade – quando admitimos a existência de algo que perdura além da morte física, aquilo a que chamam alma, ou espírito, ou partícula de energia.
Nuno Sousa (N.S.): Enquanto cientista e académico, procuro sempre conhecer o desconhecido. E isso é independente da questão que está a ser abordada. Quando observamos fenómenos sobre os quais não temos uma boa explicação, devemos, claro, ir à procura dela, seja qual for o tema que está por detrás e a dificuldade que gera, sobretudo quanto a preconceitos que alguns têm. A Ciência é uma área de liberdade sem dogmas. É desta forma que tem de ser abordada.
E que ganhos científicos já houve aqui?
L.P.: Aceitando os fenómenos tal e qual como são, procura-se investigá-los sob o rigor do método científico, mostrando o que é verdade e o que é mentira. E estou cada vez mais convencido de que, à medida que se vai investigando, demonstra-se que alguns daqueles mistérios, milagres, eram falácias, coisas que não faziam sentido nenhum. Vai-se desmascarando isso.
N.S.: O obscurantismo acerca de um determinado tema é que é problemático. Por isso, a Fundação BIAL apoia vários projetos cujo objetivo é esclarecer se uma determinada intervenção tem efeitos benéficos ou não. E, com frequência, o resultado diz que não tem. O que importa é abordar o assunto com espírito científico, para que se faça luz sobre ele.
Um exemplo…
O cérebro pode nos transportar para outras dimensões e uma delas é a espiritualidade. Quando se consegue otimizar este tipo de funcionamento do cérebro, para benefício próprio, para aumentar o estado de conforto, isto injeta um conjunto de ações e ativa redes neuronais que despertam bem–estar
Recentemente, saíram os resultados de um projeto que a fundação apoiou, que usava um conjunto de metodologias ditas de medicinas alternativas para o tratamento de algumas situações oncológicas, e que se veio a demonstrar que não tinham nenhum efeito. Portanto, as práticas bem estabelecidas das metodologias oncológicas, seguidas atualmente, são as que devem ser usadas. Isto é uma evidência de que não faz sentido propor determinada intervenção como uma alternativa àquilo que já provou.
Mas nem tudo acaba em resultados frustrantes…
L.P.: Não. Ao mesmo tempo, vai-se demonstrando que alguns daqueles fenómenos são de facto verídicos. E vai-se trabalhando neles, procurando explicações, para perceber que tipo de energias é que estão por detrás, de forma a que as pessoas possam utilizar esse conhecimento em benefício próprio, sob o ponto de vista individual ou coletivo. É isso que a fundação procura apoiar – a investigação que se faz, não só nas Neurociências, onde ainda há muito para desbravar, mas também na área da Parapsicologia, onde há muitíssimo mais para desbravar.
Quais foram as investigações conjuntas de Neurociências e Parapsicologia cujos resultados mais vos impressionaram, até agora?
Para mim, os resultados mais impactantes são os que se relacionam com as supostas vidas passadas, que nos levam a equacionar a nossa presença no mundo Terra. Várias universidades europeias e norte-americanas têm feito bom trabalho nesta área. Mas a que liderou o processo foi a Universidade da Virgínia, no início sob a batuta do [falecido] professor Ian Stevenson – que foi um cientista respeitado pela academia, tem os seus resultados publicados nos mais diversos meios científicos –, que criou, no final dos anos 1960, uma equipa de médicos e psicólogos que pediu ao mundo clínico e científico que lhes reportassem os casos, sobretudo de crianças, que diziam terem tido supostas vidas passadas.
Que tipo de relatos eram esses?
Crianças diziam que tinham vivido 50, 100 ou 200 anos antes, num outro país, com outro nome, com outros pais. Enfim, uma história em relação à qual a família começa por dizer: “Cala-te com isso, não digas disparates.” Mas, quando as crianças insistem, é natural que a família, os pais, as levem ao médico, ao pediatra, ao psicólogo, ou até mesmo ao psiquiatra. O que o professor Stevenson e a sua equipa pediam era que, quando os médicos e psicólogos tivessem conhecimento desses casos, lhes dessem notícia e lhes permitissem que os estudassem. E, portanto, desde os finais dos anos 1960, essa equipa da Universidade da Virgínia foi deslocando os seus técnicos, primeiro mais nos EUA, mas depois um pouco por todo o mundo. Até agora, estudaram cerca de três mil casos, de crianças entre os 2, 3 anos, e os 7, 8 anos, que evocam supostas vidas passadas.
Qual é a metodologia da investigação?
A equipa desloca-se até onde a criança vive, ouve a sua história de uma forma muito aberta, sem lhe colocar grandes questões, para não a conduzir num determinado sentido. Depois, a equipa conversa com a família, com os amigos mais próximos, com os vizinhos, para tentar perceber se há uma relação entre a história que a criança conta e algo da realidade que a rodeia. Por exemplo, se um familiar ou um vizinho esteve ou está emigrado no país onde a criança diz que viveu antes, ou se está a passar na TV uma telenovela situada nesse outro país. Ou seja, se há uma conexão entre a história que a criança conta e o que ocorre à volta dela, desinteressam-se do caso, já não o estudam mais.
Em que situações prosseguem o estudo?
Se não há conexão nenhuma, se não há razão nenhuma para a criança contar aquela história, uma suposta vida passada, mas insiste em relatá-la, então deslocam-se ao país, à cidade onde ela diz que viveu antes, e tentam demonstrar a factualidade da existência, ou não, de uma personalidade prévia com as características que a criança descreve. E repare-se: em 68% dos casos – e 68% de quase três mil são cerca de dois mil casos –, a equipa da Universidade da Virgínia pôde demonstrar a existência de personalidades prévias, que viveram muitos anos antes, com características descritas pelas crianças que evocam supostas vidas passadas.
Como conseguiram chegar a essas conclusões?
Através de um conjunto de dados factuais em torno da personalidade que a criança disse que existiu antes e que correspondem ao que ela vê: registos de nascimento, de casamento e de morte, exames médicos, por vezes até elementos profissionais, das empresas onde as crianças dizem que trabalhavam antes, entre muitos outros. O trabalho da equipa da Universidade da Virgínia foi depois replicado em outras universidades europeias e norte-americanas, na Islândia, nos Países Baixos, nos EUA, no Canadá, com resultados em absoluto semelhantes.
Do que estamos aqui a falar?
O professor Stevenson e o professor Jim Tucker, que lhe sucedeu, sempre disseram que, apesar dos resultados obtidos, não está cientificamente demonstrada a teoria das vidas sucessivas, ou da reencarnação. Mas a melhor explicação para esta situação é de facto a hipótese das vidas sucessivas. Para mim, estes resultados são os que mais devem fazer as pessoas e, sobretudo, a Ciência ponderarem, para dar continuidade à investigação e podermos concluir como é que isto pode explicar-se e como poderá influenciar a presença do ser humano à superfície da Terra.
Em 68% dos casos – e 68% de quase três mil são cerca de dois mil casos –, a equipa da Universidade da Virgínia pôde demonstrar a existência de personalidades prévias, que viveram muitos anos antes, com características descritas pelas crianças que evocam supostas vidas passadas
Refere-se a quê? A uma mudança de comportamentos?
Sim. A Humanidade tem hoje um propósito de vida: a sobrevivência. Começa-se e acaba-se, em princípio, umas décadas depois. E, dentro desta vida, luta-se para se viver o melhor possível, para se ser o mais feliz possível. Até que termina. Mas se o que prevalecer for a teoria das vidas sucessivas, vimos à Terra, temos uma determinada experiência de vida e depois não acaba tudo. É apenas um capítulo, a que se seguirá outro. Aqui, o propósito primário será com certeza o autoaperfeiçoamento, e já não a sobrevivência. Será virmos à Terra para procurarmos fazer uma trajetória evolutiva de sentido ascendente.
Se houver uma atitude construtiva, positiva, a postura será a de procurarmos apoiar os outros de uma forma solidária, para que todos possamos fazer em conjunto a melhor trajetória educativa possível. Isto é dizer que o ser humano está essencialmente aqui para se aperfeiçoar, para progredir espiritualmente.
À luz de uma entidade divina?
Não é pela via da fé que a demonstração da equipa da Universidade da Virgínia nos faz ponderar – não tem que ver com nenhuma religião. É pela via da Ciência que nos põe a refletir sobre o que andaremos aqui a fazer.
Como neurocientista, o que diz sobre isto?
N.S.: O que mais me fascina é a nossa capacidade cerebral de poder viajar no tempo, de andar para trás e para a frente. Fascinam-me, por exemplo, os factos demonstrados nos random numbers, ou seja, a capacidade que algumas pessoas têm de influenciar a saída de determinados números em grande escala, que bate de forma significativa a possibilidade estatística. E há pessoas que dizem ter a capacidade de antecipar um determinado fenómeno. Todos nós sentimos isto, é bom que se diga, com maior ou menor frequência. Mas há pessoas que o fazem com muito mais frequência e uma muito maior acurácia. Existem dimensões da consciência que, de facto, ainda não entendemos. Como neurocientista, considero estes fenómenos particularmente estimulantes.
Está cientificamente demonstrado que a força da mente, sem qualquer interação física, consegue mover objetos e interferir em sistemas?
L.P.: Está hoje demonstrado, por investigações conduzidas sob o rigor do método científico e em ambiente laboratorial, que, por exemplo, há seres humanos que conseguem, através da força do pensamento, pôr uma roda de bicicleta a girar para um lado ou para o outro. Um exemplo diferente: está também demonstrado que há seres humanos que conseguem fazer com que, no lançamento de dados, determinada face fique bastante mais vezes para cima do que as outras.
Mas o que ganha a Humanidade com isso?
Se de facto o nosso pensamento tem toda esta força, se calhar vale a pena ponderarmos o seu uso de uma forma positiva para nós próprios e para quem nos rodeia. Todas as escolas de Psicologia dizem hoje que é importante que as pessoas pensem positivo, atuem de uma forma construtiva. O povo sempre falou na força do pensamento – e tinha razão.
Até que ponto a Ciência tem sido eficiente a separar o trigo do joio, nesta área?
N.S.: Diria que tem sido bastante eficaz. O que frequentemente existe é um aproveitamento, até populista, de alguns fenómenos que não encontram uma boa fundamentação científica, e dos quais tiram partido aqueles que querem cavalgar essa onda do desconhecimento. É na separação do trigo e do joio que está o esforço que temos de fazer.
Dois exemplos: as áreas da Acupuntura e do Mindfulness, que eram encaradas, há algumas décadas, quase como fenómenos pseudocientíficos, hoje estão em absoluto consolidadas. Ainda a título de exemplo, a Acupuntura é agora uma intervenção terapêutica estabelecida para a modulação da dor. E o Mindfulness serve como uma prática que diminui a ansiedade.
Que benefícios mais substantivos a interseção entre cérebro e espiritualidade pode trazer para a saúde e o bem-estar?
O cérebro humano é extraordinariamente sofisticado. Pode nos transportar para outras dimensões e uma delas é a espiritualidade. Essa é uma característica inata do nosso cérebro – e a esmagadora maioria das pessoas pode usar essa capacidade para se projetar. Quando se consegue otimizar este tipo de funcionamento do cérebro, para benefício próprio, para aumentar o estado de conforto, isto injeta um conjunto de ações e ativa redes neuronais que despertam bem-estar. E isso é fundamental para a boa saúde mental dos indivíduos e até, em determinadas circunstâncias patológicas, para recuperar alguma parte da condição que a pessoa sofre.
Visao