À boca da esperança

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À boca da esperança

À boca da esperança

O caso ocorrido esta semana, da chegada dum bote com migrantes, supostamente marroquinos, à localidade da Boca do Rio, evidencia, entre outras questões, a da fragilidade do sistema português no que à receção e proteção de menores migrantes diz respeito.

Com efeito, e ao que se sabe, na pequena embarcação encontravam-se 38 pessoas, entre as quais sete menores de idade. Tirando a informação relativa ao bebé de um ano, que, naturalmente, estaria acompanhado da mãe (presume-se!) nada se sabe quanto aos restantes seis.

As notícias trataram rapidamente de dar conta e realçar o facto de terem sido adotados todos os mecanismos de acolhimento para estes casos, enfatizando o facto de terem sido observados pelo pessoal de saúde, dado o estado de desidratação e hipotermia apresentado, de lhes ter sido dada comida e agasalho e terem sido alojados condignamente.

Estes passos, a todos os níveis meritórios, são os mesmos que faríamos em qualquer situação de crise, como aliás foi dito por profissionais da Proteção Civil.

Acontece que, no caso da interseção da chegada de imigrantes irregulares, existem normas especificas internacionais e europeias que têm que ser cumpridas e que, neste caso e até ao momento, ninguém esclareceu se foram ou não observadas.

Há algo extraordinariamente estranho em todo este caso: nem um destes imigrantes solicitou asilo. Será que lhes foram dadas todas as informações de caráter jurídico na língua que dominam?

O facto de 38 pessoas, entre elas algumas famílias com, pelo menos, um bebé de colo se meterem numa casca de noz e fazerem-se ao desconhecido, demonstra um enorme desespero. Ninguém enfrenta a morte de ânimo leve e quem o negar nunca esteve em situações análogas (felizmente) e é incapaz de qualquer empatia. Dito isto, é óbvio que, face à Lei, estas pessoas devem retornar aos seus países, fiquem descansados os cheganos e quejandos desta vida.

Agora, a Lei deve ser cumprida na sua totalidade e não apenas nas partes que nos dão jeito.

Retornemos, pois, à questão dos menores.

Quantos são? Que idade têm? Estão acompanhados ou viajam sozinhos? E, neste caso, iniciaram a viagem já por si mesmos ou perderam a família no trajeto?

No quadro do Sistema Europeu Comum de Asilo (CEAS), a qual estamos obrigados, existem regras muito próprias em relação ao modo como devem ser tratados os menores, sobretudo quando não acompanhados, sendo que a primeira diz respeito à nomeação de um tutor legal. Logo aqui se impõe a pergunta óbvia da observância desta norma: foi nomeado algum tutor ou representante legal que possa atuar em nome do(s) menor(es)?

Em tempos sugeri a criação da figura do Provedor da Criança em Risco, especializada não apenas na questão dos migrantes mas na vulnerabilidade dos menores perante situações de risco evidente. Ora como não existe um único organismo estatal responsável pela nomeação de tutores com estas especificidades, o processo pode demorar semanas ou mesmo meses. Durante este período, os menores podem ser submetidos a entrevistas de asilo, exames médicos ou até a procedimentos de transferência sem um representante que defenda os seus interesses.

Em países como a Holanda, a Alemanha, a Suécia ou a Bélgica existem autoridades formadas e especializadas para atender a estes menores de idade, em situação de vulnerabilidade. O tempo de nomeação de um tutor especializado nestes países oscila entre as 48 horas (Suécia) e uma semana (nalgumas regiões na Alemanha onde estes serviços dependem dos governos locais).

Aliás, no caso da Holanda e como exemplo de boas práticas, foi desenvolvido um “Protocolo de Acolhimento para Menores Não Acompanhados” que obriga as autoridades a contactar de imediato uma unidade de acolhimento especializada, composta por profissionais de proteção infantil devidamente formados. Desta forma, é assegurado que o menor recebe informações jurídicas numa língua que compreende, tenha acesso a primeiros socorros psicológicos e se encontre num ambiente seguro antes de qualquer início de procedimento formal.

Em Portugal, é normal os menores não acompanhados serem entrevistados por agentes sem formação e sem a presença de um tutor ou de um profissional de proteção infantil — uma prática que contraria tanto a Convenção sobre os Direitos da Criança como as diretivas da União Europeia.

A notícia que circulou deu também conta das condições nas quais pessoas ficariam alojadas. Numa primeira fase em locais improvisados, até posteriormente encaminhadas em Centros de Instalação Temporária(CIT).

Porém, em bom rigor, o único CIT do País encontra-se no Porto e não está adaptado para receber menores. Todos os demais são pequenas salas nos aeroportos internacionais de Faro Lisboa e Porto.

Contudo, e ainda dentro do mesmo quadro das Diretivas do Sistema Europeu Comum de Asilo, o artigo 24.º da Diretiva das Condições de Acolhimento faz referência a alojamento específico para estes menores.

Como Portugal não dispõe de centros de acolhimento estatais para menores não acompanhados, a maioria destas crianças é acolhida em instalações geridas por organizações não-governamentais, ao abrigo de protocolos com a Agência para a Integração, Migração e Asilo (AIMA) e com o Instituto da Segurança Social (ISS). Esta dependência das ONGs para este efeito leva a que, por norma, os menores não acompanhados sejam alojados juntamente com outros abrangidos por regimes de proteção social ou de justiça juvenil, com todas as consequências que daí advêm.

Por último, a questão do retorno coercivo tem que se lhe diga à luz do Regulamento de Dublim III, que coloca a reunificação familiar e o princípio do “superior interesse da criança” no centro da decisão.

Estes menores têm familiares na União Europeia aos quais pretendem reunir-se? Caso assim seja, esse direito está-lhes consagrado pela Lei Europeia.

O que parece, pois, ser um caso que apenas divide as águas entre os que consideram que podemos acolher todos e os que acham que o ideal seria terem afundado o barco ou fazê-los retornar pelo mesmo meio que chegaram, é algo bem mais complexo que não se pode analisar com a leveza nem do populismo nem do paternalismo.

Cumpra-se a Lei, de acordo! Mas toda ela e, no caso dos menores de idade, a máxima do Superior Interesse da Criança, sobrepõe-se .

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

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