Estudo desvenda o que ocorre no cérebro quando temos consciência de que estamos sonhando

Algumas pessoas são capazes de ter consciência de que estão sonhando quando ainda se encontram "dentro" de seu próprio sonho, até mesmo controlando certos aspectos dessa experiência. Um novo estudo, com participação de cientistas brasileiros, acaba de traçar o retrato mais completo do que acontece com o cérebro nesses momentos.
Coordenado por Çağatay Demirel, da Universidade Radboud, na Holanda, o trabalho sobre os chamados sonhos lúcidos contou com a colaboração de cientistas de outras instituições da Europa e dos Estados Unidos e de uma dupla do Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), Sérgio Mota-Rolim e Sidarta Ribeiro.
"O sonho lúcido sustentado é um estado de vigília interna, um despertar para o mundo de dentro que envolve alterações profundas na forma como o cérebro processa informações", resumiu Ribeiro em conversa com a Folha.

"Para a maior parte das pessoas, a ocorrência da lucidez durante o sonho provoca um susto, seguido do despertar abrupto. A sensação subjetiva dessa experiência é geralmente a de que o sonho lúcido corresponde a um estado tênue de transição entre o sono REM [a fase em que os sonhos "normais" são comuns] e a vigília", conta ele.
Entretanto, ao que parece, há quem tenha uma espécie de talento natural para continuar tendo esse tipo de sonho sem acordar. É algo relativamente raro e, além disso, difícil de registrar em laboratório.
Essa é uma das razões pelas quais a análise conduzida pela equipe internacional no novo estudo, mesmo sendo a mais ampla já feita, acabou ficando com um total de apenas 44 gravações da atividade cerebral durante sonhos lúcidos. As medições foram feitas com 26 indivíduos diferentes (dos quais 20 do sexo feminino, com idade média de 25 anos), juntando os dados de diferentes ocasiões e laboratórios. Os resultados saíram em 14 de maio no periódico especializado The Journal of Neuroscience.
Por causa dos critérios bastantes exigentes quanto às características dos dados, gravações feitas na própria UFRN acabaram não entrando na análise final. "Mas, como já estávamos bem envolvidos em toda a abordagem, fomos convidados a seguir no estudo e trabalhar nas análises, no texto etc.", explica o especialista.
É curiosa a maneira usada para confirmar a presença do sonho lúcido enquanto a atividade elétrica cerebral da pessoa está sendo medida em laboratório com a ajuda do EEG (eletroencefalograma). Antes de entrar no estado onírico, os participantes combinam com os pesquisadores um sinal de que a experiência está acontecendo: movimentos voluntários do globo ocular para a direita e para a esquerda, num padrão definido.
Mexer os olhos, no entanto, também pode introduzir um fator de confusão nas medições da atividade cerebral. Ocorre que os olhos têm, de forma natural, os chamados movimentos sacádicos (também chamados de sacadas oculares). Quando estamos acordados, eles nos ajudam a obter uma visão mais completa do que estamos enxergando. Eles permitem isso mudando ligeiramente, em intervalos curtíssimos de tempo (na escala dos centésimos de segundo), o que está "centralizado" quando enxergamos.
Só que esse processo não para durante o sono com sonhos. E isso produz certos sinais no EEG que podem acabar confundindo a visão geral da atividade do cérebro que os pesquisadores desejam obter.
Levando em conta esses e outros detalhes do funcionamento cerebral, a equipe liderada por Demirel conseguiu observar o que acontece em diferentes regiões do cérebro quando alguém experimenta um sonho lúcido. O resultado geral dessa análise é que deixa de fazer sentido considerar os sonhos lúcidos apenas uma fase intermediária entre o sono REM e estar acordado. "Trata-se de um estado em si mesmo, não apenas de uma transição entre estados", diz Ribeiro.
Os pesquisadores mapearam ainda mudanças nos padrões de ondas cerebrais, ou seja, os padrões de atividade elétrica cerebral segundo determinados ritmos, em certas áreas do órgão. O pesquisador da UFRN destaca, por exemplo, o aumento da potência de ondas gama no precuneus, área associada à autoconsciência e à imaginação, que também é ativada de forma semelhante tanto em sonhos "normais" quanto durante o uso de substâncias psicodélicas.
Por outro lado, a atividade de ondas beta fica reduzida na área conhecida como TPJ (junção temporo-parietal). Essa região normalmente integra os dados que vêm dos sentidos (sons, tato, visual), ajudando a construir a autoconsciência corporal, ou seja, a percepção dos limites do próprio corpo. Quando ela é inibida em pessoas acordadas, elas costumam relatar uma experiência de estar "fora do corpo".
Além da compreensão básica acerca de um fenômeno tão intrigante, os pesquisadores apontam a possibilidade de utilizar os sonhos lúcidos em práticas psicoterapêuticas. Para isso, seria necessário aprender como produzi-los e/ou controlá-los de forma mais efetiva, e existem maneiras de facilitar essa possibilidade, diz Ribeiro. Algumas práticas de ioga indianas e tibetanas são facilitadoras de sonhos lúcidos, assim como a meditação e o hábito de fazer um diário de sonhos (registrando sistematicamente os sonhos que a pessoa teve na noite anterior).
uol