<![CDATA[ Sobre uma certa insustentabilidade global ]]>
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Quando foi que isto aconteceu, e como aconteceu tão depressa? O que nos faz confiar e acreditar, sem questionar, no que nos diz uma máquina que debita zeros e uns em forma de palavras? Se é certo que encerra em si mesma milhares de milhões de outras palavras de livros, artigos e tudo o que está disponível na internet, também é verdade que não sabe discernir se o que encontra é verdade. Ou não.
Como foi que nos entregámos, entregando o nosso conhecimento, produção científica e artística e, agora, a nossa saúde mental, a algo imaterial que se desliga através de um botão? Estaremos mesmo com um grave problema de saúde mental, caracterizado pela preguiça intelectual e falta de espírito crítico, ou passou-se algo que escapou à maior parte de nós?
Porque há cada vez mais pessoas que usam a inteligência artificial para acompanhamento psicológico, e como já há dois anos tive alunos a analisar o tema, decidi partilhar. Em 2023, um grupo dos meus alunos decidiu analisar o Chat GPT como ferramenta de terapia, comparando a versão 3 e 4, partindo dos resultados de um estudo que indicava que 1 em cada 4 pacientes seria mais propenso a falar com uma IA do que a frequentar terapia. Contextualizaram teoricamente os seus pressupostos e a inteligência artificial, concluindo que este tipo de ferramenta estaria mais próximo da psicoterapia do que psicologia ou psiquiatria. E porque decidiram seguir este caminho? Também eles já tinham conversado com o Chat GPT para procurar aconselhamento em momentos mais difíceis. E, tal como o que encontraram nos estudos sobre o tema, também eles referiam a ausência de julgamento e a sua constante disponibilidade, às quais se acrescentam, o custo, a aparente confidencialidade e o fácil acesso.
A investigação científica na área não é consensual. Alguns autores encontram vantagens, outros apontam o dedo aos aspectos problemáticos associados à utilização de ferramentas de inteligência artificial, para procurar ajuda ou resolver algum problema relacionado com o nosso bem-estar ou saúde mental. Onde começa e acaba um e outro? Estarmos menos bem é sinónimo de ausência de saúde mental ou tratar-se-á de uma questão temporária que uma conversa descomplexada e sem julgamento, ainda que sem garantia de real apoio ou contexto, vai ajudar? Quando foi que conversar com um amigo se tornou mais difícil do que falar para uma máquina?
Alguns teóricos defendem que estas podem ser ferramentas de apoio, se usadas de forma apropriada. E qual é essa maneira apropriada? É uma questão que nos deveria preocupar porque estas ferramentas já conseguem, de forma simples, mimetizar as características da comunicação humana, captando o nosso tom e estilo para escreverem como nós. Da mesma forma, providenciam informações básicas e já são capazes de mostrar empatia o que, há menos de dois anos, não acontecia. Embora continuem a dar respostas simples, muitas vezes desadequadas a situações mais complexas, se desenhados correctamente, podem ser alternativas baratas e acessíveis para acompanhamento psicológico. Será que não estaremos a confiar demasiado na capacidade de outros seres humanos em programar máquinas que aprendem connosco, sem que seja possível controlar completamente essa aprendizagem? A interpretação raramente é linear e a expressão humana apresenta várias camadas que dificilmente este tipo de máquina conseguirá decifrar.
Há mais de 10 anos, o filme Her explorava o amor nos tempos modernos, mostrando esta co-dependência que podemos desenvolver com máquinas aparentemente sensitivas. Em Her, o protagonista apaixona-se por um sistema operativo com total capacidade de pensamento e expressão independentes. No filme, Joaquin Phoenix levava a sua namorada no bolso, a qual observava o mundo através da câmara do telefone. Há cenas de grande romantismo, numa história que também demonstra a solidão moderna, e como estas máquinas nos poderão dar a sensação de que, afinal, não estamos (assim tão) sozinhos, mesmo sem outro ser humano ao nosso lado. E, nisto tudo, o problema nunca serão as máquinas, ou quem as programa, antes a impossibilidade do acesso, para todos, a programas de cuidados de saúde mental e uma sociedade baseada no bem-estar global. A sociedade ignora o indivíduo, focada no lucro. As pessoas não querem, necessariamente, falar com máquinas mas querem minimizar a dor que estão a sentir. Procurem as soluções digitais e artificiais que quiserem mas o problema reside no acesso a cuidados de saúde. E este, é um problema de insustentabilidade global.
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As pessoas não querem, necessariamente, falar com máquinas mas querem minimizar a dor que estão a sentir. Procurem as soluções digitais e artificiais que quiserem mas o problema reside no acesso a cuidados de saúde.
Deixar a cultura no fim do tacho não nos vai fazer rapar o tacho como se estivéssemos a preparar um bolo e quiséssemos lamber o que sobra da massa, antes desta ir ao forno. É desvalorizar o que tem valor.
A verdadeira insustentabilidade está neste capitalismo de dados que transforma formas de vida sem que ninguém disso se aperceba e faz de nós uma espécie de amiba que vai na onda sem reparar que está no mar.
A hiperconectividade pode acrescentar um impacto negativo no funcionamento cognitivo e na saúde mental. Ainda que não tenhamos (ainda) provas causais robustas, a preocupação é válida e os seus efeitos reconhecidos pela maior parte das pessoas, razão pela qual a geração Z está a revelar-se pioneira na alteração de comportamentos em relação ao digital.
Mas o que eu não percebo é o que nos leva a aceitar o que temos, sem questionar, sem um movimento popular de relevo que vá além das greves, as quais, sabemos, resolvem tudo, sobretudo a vida dos que são prejudicados pela greve.
sabado