O Matuto, um dia frio, e um bom lugar para ler um livro

O Matuto não embarca em urgências climáticas. ‘Urgências’, é nos hospitais, e, olha lá! Mas, adiante! Aqui, no Brasil, país que tão generosamente acolheu o Matuto no seu seio, o Inverno instalou-se de armas e bagagens. O mês de Agosto é tempo de vento – diz Dona Sirlei, a gentil esposa do Matuto. O certo é que há uma ventania histérica que agarra os prédios pelas orelhas e sacode, sem dó nem piedade, portas e janelas. A piscina na “Casa das Pontes” fica malcomportada e enche-se de galhinhos e pétalas e folhagens e cinzas das queimadas de cana. Fica hostil. Uma inimiga!
Dona Sirlei, gentil esposa do Matuto, diz: “adoro este friozinho. Faz lembrar a Europa”. Todavia, na sua memória afectiva o Matuto revive cenas da vida Inglesa, em que a cidade assumia um ar egoísta, apressado e ao mesmo tempo brutal e cruel. Uma algozaria! Quando era Matutinho, atravancado de luvas, botas, gorro, capote, cachecol, o Matuto atravessava as ruas do Luxemburgo, onde a neve se transformara em lama feroz, com o vento gélido esbofeteando as faces. Recordações frias!
Neste dia frio, o Matuto aconchega-se no seu sofá – certamente um bom lugar para ler um livro. (veja-se a bela canção de Djavan, aqui) No regaço, crónicas de Machado de Assis, escritas em 1893, quando as estações do ano tinham cara própria. Já então, o escritor se queixava de “invernos mais longos e intensos”. E, dava conta de que os povos da Europa andavam penando, “sentindo um calor demorado e fortíssimo”, a tal ponto de “andarem com o chapéu na mão, bufando e sempre ingerindo gelados “. Bom, o Matuto, embora entenda das coisas, não é climatologista, mas já vai palpitando que por este andar, qualquer dia temos as gentes de São Paulo a patinar no gelo, esquiando na neve, enquanto em Londres os súbditos de Sua Majestade, irão dormir em redes, ao relento e de portas abertas. Como se vê, os caprichos e as intempéries climáticas, não são novidade para o Matuto.
O Matuto pega num livro com os melhores escritos de Rachel de Queiroz. Enquanto, Assis experimentara e adorava o frio, Rachel de Queiroz lamentava o desgosto de “ir para a cova sem nunca ter conhecido frio de verdade, frio com neve, fogo aceso, agasalho até o nariz e luvas de lã”. Rachel era do Ceará, estado brasileiro praticamente encostado à linha do Equador. Por lá, friura não existe. Só gastando bom dinheiro se poderia sentir friozinho a sério. Por isso a frescura Europeia era “um requinte, prazer de grã-fina”. A mulherada, em incursões invernis à capital carioca ou a São Paulo, voltava munida de “indumentárias hibernais”. Dava dó ver a teimosa elegância com que desfilavam pelas ruas de Fortaleza envergando “luvas de pelica, de cano comprido”. Mas o calor cearense não dava tréguas e o suor escorria pelos braços, remetendo as luvas para as gavetas cheias de bolas de naftalina.
O Matuto constata que Rachel de Queiroz, em 1952, mantem intacto o provérbio Português: dá Deus a roupa conforme o frio. Na lógica Racheliana, “se não fosse o problema do recato Cristão, ou o desejo de ornato, poderia um homem na minha terra nascer e viver oitenta anos, sem jamais sentir a necessidade de um trapo em cima do corpo”. E aí Rachel de Queiroz acrescenta um detalhe curioso: “o sol é quente, mas a ventilação é ininterrupta – todo o Ceará é como uma grande praia varrida incessantemente pelo vento do mar. O ano todo sopra uma agradável aragem (o doce ‘aracati’ – bom vento – da hora do crepúsculo, por exemplo”. Ah, o vento a intrometer-se novamente – suspira o Matuto.
Nesse momento uma rajada astuta e atrevida virou a página do livro bem no meio do parágrafo. O Matuto, surpreendido, deu um pulo no sofá e tentou segurar as páginas com as duas mãos, mas o vento, sapequinha, escapuliu-se rindo entre as cortinas. “Ora essa! Que maçada!”, resmungou o Matuto, “quem ensina esse vento a ler antes de mim?”. Insistiu, fechou os olhos por um instante e respirou fundo. O vento, pleno de travessuras, voltou a soprar, desta vez trazendo consigo folhas secas do jardim, que se alojaram no livro, feitas marcadores improvisados. O Matuto suspirou, resignado: “Este vento gosta de livros… só que lê mais rápido do que eu!” Aahhffff! Sacanagem! Um dia frio, um bom lugar para ler um livro, e um ventinho, formam uma parceria perigosa – matuta o Matuto.
Jornal Sol