O país só quer saber a quem pertence a sombra do burro

Pensando bem, não é de estranhar que a necessidade de um novo aeroporto em Lisboa tenha começado a ser discutida há mais de 50 anos e hoje, sem uma pedra colocada no caminho para Alcochete, nos envergonhemos, sem reconhecer a culpa própria, com as filas (obrigada, António Costa e Eduardo Cabrita, pelo incrível serviço que prestaram ao país com a dissolução do SEF) de indignados estrangeiros que aqui ainda vêm passar férias. De quem precisamos, literalmente, como de pão para a boca, uma vez que o turismo continua a ser o grande motor desta pífia economia a que chamamos Portugal, onde todos se acham merecedores de direitos e de apoios mas poucos estão dispostos a assumir deveres e responsabilidade. E onde ainda não se percebeu que não há mesmo almoços grátis: cada migalha é paga, mesmo que nos sirvam carcaças duras e bolorentas.
Esta incapacidade de entender o simples funcionamento das coisas é combustível para a miséria a que aceitámos ser votados e da qual recusamos sair, sobrevivendo sempre agarrados às saias do Estado. Quem sabe ler um recibo de salário? Quem verdadeiramente faz contas a quanto paga diariamente em impostos? (É daí que vem o dinheiro com que o Estado paga o que nos "oferece".) Quem é que já percebeu que a receita para a prosperidade de todos passa muito mais pela iniciativa privada e por empresas grandes e lucrativas, e assim capazes de pagar bons salários e fixar os melhores, do que pela dependência familiar e corporativa em relação a um Estado que entende um remediado como "rico" e castiga lucro e rendimentos como pecados capitais (esta intervenção de Pedro Brinca devia ser de visualização mandatória)?
Nada disso importa. Preferimos levar o sucesso ao pelourinho e seguir o Estado de mão estendida, empenhando o futuro à suja espuma dos dias que nos metem pela garganta abaixo. Somos os atenienses de outrora, mais preocupados em conhecer o fim da história de Demóstenes do que em solucionar problemas estruturais que nos prendem ao poucochinho, mais inclinados para a indignação sobre a cobrança da sombra do burro do que dispostos a suar pelo nosso futuro e a exigir a quem sobre ele tem responsabilidades.
Discute-se repetidamente (há quase uma década!) os casos dramáticos provocados pelo fecho de urgências, os bebés nascidos em ambulâncias, a incapacidade de os helicópteros de emergência servirem os hospitais, os atrasos e problemas do SNS, a necessidade de ali fixar pessoas, os orçamentos cada vez mais bojudos que só alimentam um sistema viciado. Mas não se dedica um minuto a pedir um plano de ação com objetivos concretos e mensuráveis para os desafios que se põem à Saúde no Portugal de 2025 — que não são de todo os dos anos 90 como o SNS não o pode ser. Um plano com tempo real para levar a cabo, cujo cumprimento possa ser monitorizado e que exiba uma cara que se responsabilize pela sua execução (e assuma as consequências se sair gorado).
O mesmo vale para a educação, com o debate perdido em delírios wokistas e discussões inconsequentes sobre a carreira dos professores — ninguém quer saber se a escola dos nossos filhos é igual à dos nossos pais, descontando a falta de qualidade e de verdadeiro saber. E para a justiça, encantado que anda o povo entre o choque com um absolvido que queriam ver no cadafalso e a escandalosa delícia de ter o diário de José Sócrates em microfone aberto.
As modernas queimas de bruxas a que chamamos comissões de inquérito substituem a atividade a que o Parlamento devia dedicar o seu tempo. E o que conta é o passa-culpas, o que se pede são justificações diárias dos governantes — já exigidas até por candidatos presidenciais —, e de preferência que rolem cabeças. Medidas de longo prazo não alimentam o espaço mediático nem trazem votos; (pouco) pão e circo para animar a malta.
Num caso declarado de Síndrome de Estocolmo, décadas de socialismo alimentaram nesta sociedade a crença quase religiosa de que essa entidade que paira sobre nós (antes, nos asfixia) deve providenciar-nos o básico e não nos cabe ambicionar nada mais do que "o básico". Sem percebermos que quanto mais socialismo pomos nessa cesta comunitária onde cabem todas as exigências de benesses, pior é o que nos chega e menos hipóteses temos de nos safarmos sozinhos. Mais dependentes ficamos das migalhas que o Estado aceita distribuir igualmente por todos, acentuando desigualdades e injustiça social. E de mais liberdade prescindimos.
Basta ver a leveza com que se determina que quem escolhe investir na educação dos filhos, mesmo que isso obrigue a sacrifícios, merece pagar também os livros e material de que precisarem, enquanto quem aceita a educação pública, que não garante professores ou aulas ou sequer algum tipo de ensinamento, terá tudo o que "não pagar nada" pode garantir e ainda livros emprestados, com nota de devolução em condições pristinas no final de um ano letivo de utilização. Basta ver como se embandeira em arco com a Creche Feliz, uma medida de uma tristeza absoluta, tal o grau de paternalismo e a realidade da sua ineficácia. Basta ver como se prefere, em plena era digital e de escalada da Inteligência Artificial, proibir os miúdos de usar o telemóvel, porque estão a ser "mal influenciados" e sujeitos a abusos, em lugar de os ensinar a pensar e ajudar a ganhar espírito crítico, trazendo a escola pública para o século XXI. Como se alguma parte disto fosse normal ou aceitável.
Quem, com mais de 50 anos, é que acha verdadeiramente que é dever do Estado fornecer a todos uma casa ou considera que viver do arrendamento é um crime contra a humanidade? Os que se lamentam, dirão que os tempos mudaram, que se abandonou a construção a preços comportáveis e se esqueceu as políticas de habitação, que os preços subiram mais do que os salários e que ninguém consegue hoje uma casa, que a culpa é dos senhorios e do turismo descontrolado. Mas os salários não podem subir se continuarmos a desprezar a meritocracia e a privilegiar o nivelamento por baixo (metade do país abaixo dos 1200 euros/mês é obra!), se continuarmos a castigar rendimentos e lucros e a desincentivar o crescimento. A construção acessível não irá arrancar se ficar a perder no negócio (é ver os concursos vazios...). E não é a apontar os senhorios como usurários sem escrúpulos e a demonizar o Alojamento Local (enquanto se aprova dezenas de novos hotéis) que se vai libertar um único apartamento.
Mas é isto, são estes grãos de pó contaminado de demagogia barata que fazem horas de discussão pública e ocupam agendas que deviam estar preenchidas com planeamento e execução, e desviam o foco de quem deveria trabalhar por resultados com responsabilidade. Para isso, claro, era preciso traçar objetivos concretos em lugar de processos de intenções, era necessário tempo de concentração e análise, padrões de medição de resultados e uma cultura de transparência, autonomia de decisão e responsabilização; tudo aquilo de que Portugal cada vez se afasta mais.
Agora estamos focados em garantir justiça social, controlando o preço a que se arrendam os toldos de praia e se vendem Bolas de Berlim. Coisas verdadeiramente importantes, que nos fazem esquecer, por exemplo, os 2 milhões de idosos portugueses, maioritariamente abandonados e miseráveis, sem assistência ou capacidade de ter acesso a uma rede que deles cuide. A cobrança da sombra do burro, verdadeiramente.
Diretora editorial do SAPO
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