"O improviso é igual ao sal. Não dá para carregar e tem de ser regulado"

A peça 'Agora É que São Elas' tem estreia marcada para 19 de setembro, e em Lisboa sobem ao palco Maria Clara Gueiros, Priscilla Castelo Branco e Júlia Rabello. Com sketches escritos por Fábio Porchat, o trio de humoristas traz várias personagens - e até seres sobrenaturais - para mostrar ao público o "absurdo" das situações do quotidiano.
O Notícias ao Minuto falou com as três atrizes, com quem Porchat se "esqueceu até" de que o texto era seu, e com o próprio autor.
Numa conversa que decorreu enquanto os ensaios ainda se faziam, os humoristas explicam como esta peça foi uma construção entre todos - de um lado, a confiança de Porchat no trio, e, do outro, o "passeio muito divertido" que é trabalhar com o humorista.
Vivemos tempos tão doidos e temos tanta coisa para fazer que às vezes nem paramos para ver o absurdo das coisas
Para quem não sabe nada sobre a peça: O que pode esperar?
Priscilla [P]: Acho que a peça fala muito sobre situações do quotidiano, pessoas, personalidades... sobre o exagero de características e situações que vivemos de uma forma absurda, mas com que temos uma identificação.
Maria Clara Gueiros [MC]: São situações com que todos vão identificar-se, situações realmente do quotidiano, do dia a dia: uma pessoa que não encontra uma amiga há muito tempo e que quando encontra ela virou uma exotérica descontrolada. Há uma mãe que conversa com uma filha sobre sexo e descobre que a filha sabe mais do que ela. São situações que começam de forma comum e são levadas ao extremo. A graça está justamente nisso.
Júlia Rabello [J]: É uma lente de aumento dessas situações que vivemos: só que é engraçado que começamos a perceber o absurdo das situações que vivemos.
MC: Verdade. Volta para a nossa perceção do absurdo.
A peça é, portanto, uma forma de relativizar as situações e de união? Como por vezes há situações que vivemos e pensamos que mais ninguém está a viver. Haver essa identificação de que falam faz parte do espetáculo?
JR: Rirmo-nos de nós mesmos é um caminho muito maravilhoso. Vivemos tempos tão doidos e temos tanta coisa para fazer, com tudo a andar a tanta velocidade, que às vezes nem paramos para ver o absurdo das coisas. Quando paramos, olhamos e enxergamos no palco... e rimos disso. Isso é maravilhoso. Acho que dá um 'restart' no sistema.
P: E com certeza a comédia tem essa união. Quando agente dá uma risada, ela puxa outra, não é? Além da peça ter essa união de nos identificarmos [com as situações], acho que o riso traz essa união de rir juntos, naquele momento.
Rir é mesmo o melhor remédio?
P: Com certeza.
MC: E também o facto de serem cenas com que todo o mundo se identifica, de toda a maneira - ou a pessoa se identifica de alguma maneira ou conhece alguém - isso já é uma porta de entrada para fazer uma comunicação com o espetador. E aí, como o texto é muito engraçado, é uma fórmula de sucesso.
JR: E isso tudo de que estamos a falar, de rir de nós mesmos, é pela caneta do Porchat, que já é uma figura que tem uma maneira de falar com que todos se identificam. Ele já tem esse universo do [Fábio] Porchat - é um passeio muito divertido.
O improviso é sempre um recurso. Recomendo para a vida
A Júlia já trabalhou com o Fábio, nomeadamente, na 'Porta dos Fundos', mas e quanto à Priscila e a Maria Clara? É a primeira vez que trabalham juntos?
MC: No teatro, sim. Já fiz uma coisa aqui e outra ali com o Fábio ao longo da vida, da carreira - que é longa a dos dois. É uma parceria realmente efetiva. No teatro é a primeira vez - e, nossa, é uma delícia.
P: No teatro também é a primeira vez, mas já gravei uns sketches com ele. Não é a primeira vez de trabalho, mas no teatro é a primeira.
E como correu agora?
P: Vou falar a gente porque a gente falou bastante sobre isto já. Temos muita segurança no humor do Fábio e no ponto de vista dele. Ele é bastante exigente, mas, ao mesmo tempo, está muito aberto para que a gente traga coisas. Foram ensaios rápidos, tivemos pouco tempo para ensaiar, mas ficámos bastante felizes com o resultado.
F: Eu estava muito confiante - até antes de começar a ensaiar. Sabia que tinha três comediantes muito boas, muito engraçadas. Fiquei muito feliz quando vi ali, na leitura, o quanto elas já estavam a acrescentar ao texto. É muito bom quando se tem comediantes que pegam seu texto e o melhoram, tornando-o mais engraçado do que eu já tinha pensado que ele podia ser. E foi isso que aconteceu. Até na hora da escrita o meu ouvido já ia muito caminhando para elas. Conheço as três, trabalhei muito com a Júlia na 'Porta dos Fundos', já sabia o jeito com que a Priscila falava, já sabia um pouco como a Maria Clara e a Júlia iam [na hora de atuar]. E aí, quando elas vieram para o ensaio e começaram a entrar de cabeça mesmo foi uma maravilha, porque aí eu consegui ver o texto acontecendo de verdade, na minha frente. Ficou muito divertido.
Há então espaço para a improvisação. Contam com alguns momentos na vossa carreira em que correu mal? E consideram que a improvisação é algo indissociável de um comediante?
J: A improvisação é o idioma em que se tem de ser completamente alfabetizado se se faz comédia, não é? A comédia precisa desse pensamento rápido, dessa agilidade de pegar naquele momento, aquele pensamento, e transformar numa coisa divertida. Eu gosto da comédia que faz coceguinha à inteligência. Adoro. Acho que o improviso faz muito isso. Acho muito importante para todos os que querem trabalhar com o humor que se sintam confortáveis nesse elemento. Acho que é um elemento perigoso, gostoso, e é daí que vêm as coisas mais interessantes - e a gente mesmo se surpreende. Desde o início temos um texto do Fábio que tem uma assinatura muito forte. Naqueles textos, se se segue só a matemática do texto já se vai fazer comédia. Só que, além disso, tem a brincadeira de vestirmos o texto e - do próprio Fábio estimular [a improvisação]. Levámos coisas e é interessante que muitas delas ficaram na peça. Daqui a pouco estamos a fazer um Shakespeare de tão grande... mentira [risos].
MC: O importante é sabermos - e todo o comediante sabe - que o improviso é um tempero. É igual ao sal. Não dá para carregar e tem de estar sempre ligado [atento] e sendo regulado - primeiro, por si mesmo, para não falar tudo o que vem à cabeça, porque a chance de erro é muito grande. Estando em cena nós as três, por exemplo, acho que nós regulamos e temos uma amizade e um entrosamento em cena em que há espaço para, de vez em quando, dizer 'foi ruim, isso não funciona' com a maior naturalidade. E há coisas que são criadas e funcionam durante um tempo. Como o teatro é muito vivo, há piadas que envelhecem, acaba o momento de elas funcionarem no acontecimento geral da vida. Temos de estar sempre regulados.
P: Às vezes acontecem coisas, no momento, que se se tem aquele mínimo de improviso, consegue-se virar adversidades [ultrapassá-las]. Agora, falando de uma coisa bem pessoal minha: A minha vida é um improviso. Tenho dificuldades com rotinas, com a organização. Então, vou improvisando o dia a dia com as minhas coisas pessoais. O improviso é sempre um recurso. Recomendo para a vida. Se alguma coisa falha na tua rotina, se souber improvisar, a coisa flui.
Fábio Porchat [F]: Mas há algo importante e nos ensaios eu ficava muito atento a isso: ao que elas traziam de novo. O que é que funcionava. O diretor também é um olhar de fora. Eu tinha de entender o que é que era engraçado só para a gente, o que é que é engraçado para o público, o que é que acrescenta na cena, ou o que é que só se joga para o lado. Acha-se um improviso engraçado, dois engraçado, dez engraçado, [mas] quando você vê só já tem improviso e a cena não caminha. Então, há um limite. Aliás, às vezes mesmo, penso 'isto está meio desdizendo o que a cena fala, está indo para outro caminho.' Durante os ensaios fiquei muito de olho para ver o que é que elas traziam porque o texto às vezes pede umas coisas que eu mesmo não vejo e que elas, que estão a fazer, em cena, veem. Durante os ensaios, acho que foi o mais importante. E claro, durante a peça, o diretor não está lá e elas aprontam mil e umas. Mas, de vez em quando, eu apareço de surpresa, só para deixar elas com medo [risos].
MC: De vez em quando ele pede, como foi esse fim de semana [em maio], para gravar uma sessão e até agora não sabemos qual vai ser gravada.
Como assim?
F: Estou a fazer o meu espetáculo e por isso não consigo assistir aos ensaios todos. E elas estão lá - então eu peço para a produção gravar a peça, para falar da cena e dizer como está a ser.
Também interpretam três personagens masculinas durante o espetáculo. Qual é a maior dificuldade, se é que existe, em interpretar um homem?
P: O género não é assim tão importante nas situações da nossa peça. É só para mostrar que pode acontecer com qualquer um. Não é necessariamente uma coisa da mulher ou uma coisa do homem. A cena do otimista, por exemplo, que são dois homens, e que é sobre uma pessoa que tem um otimismo irritante...
Aquela 'positividade tóxica'?
P: Exatamente. E não tem uma necessidade específica. Não é uma questão. A dificuldade é como nos sketches: incorporar isso, dar o corpo a essa personagem.
MC: Mas já está tudo no texto. Sempre falo isso. Se fizermos como está escrito já é um ganho. Porque o texto é muito bem escrito e a gente claro que precisa dar um toque aqui e ali, mas o texto já diz tudo.
J: Acho que só tem uma cena, que é a do casal, do sexo, em que brincamos um pouco com a questão do género, porque, no geral, há esse 'sabor': serem homens, mulheres. Inclusive, temos seres sobrenaturais.
Elas tomaram os textos para elas e fazem aquilo com muita naturalidade. Consigo divertir-me. Não é tenso para mim. Até esqueço que o texto é meu
Pelo tópico que traz, já que são várias histórias, há alguma história ou personagem que no contexto atual seja mais importante ou mais urgente? Ou tudo é importante?
P: Tudo é importante, mas eu diria que uma identificação maior é a que temos com aquelas pessoas que rezam para todos os santos e que fazem várias preces e já chegam e sabem qual é o teu signo - mas também sabem qual é o teu santo e qual a oração que têm de fazer. Hoje em dia acho que todos conhecemos alguém que é super do mapa astral e sabe o signo, a cor e a pedra. Acho que tem muito essa identificação. Acho que também é bastante atual a cena da filha com a mãe, que é uma cena em que elas conversam sobre sexo. Sobre a internet que te dá alguns conhecimentos. O Anjo do Constrangimento também, que é um anjo que quando você fala, 'dá um fora', esse anjo vem e fala: 'Bom...'. Ou a Mulher Maravilha, em que as mulheres hoje estão tão cansadas, que até a Mulher Maravilha já está exausta - acho que tem também esse lugar.
MC: Tudo tem um ponto importantíssimo.
P: Acho que é muito interessante essa cena que é a conversa da mãe e da filha adolescente. É muito um retrato de uma sociedade em que os pais não têm essa conexão com os filhos e acham que eles ainda são crianças. Mas na internet os filhos já têm acesso a coisas que nem os pais sabem do que se trata. No fim das contas, tem esse olhar. Há também uma cena em que é um pai e mãe ali com um bebé. Há essa ansiedade da sociedade em querer que a criança fale, ande, que seja especial, que a criança com seis meses já esteja a cantar o hino nacional. Há uma coisa um pouco aflitiva destes pais, que não deixam a criança ser criança, que não dão o tempo para as coisas. Uma coisa de 'meu Deus do céu, será que o meu filho vai falar?' Calma, uma hora ele vai falar. Existe esse lugar que fala do tempo, da pressa, da geração. Acho que isso tudo está muito presente na peça.
Pelo que sabemos, o Fábio não sobe ao palco, mas é quem escreva peça. Se tivesse de escolher: escrevia para sempre ou atuava?
Acho que atuava. Gosto muito de estar no palco recebendo o 'ao vivo' das pessoas, gosto de olhar para aquelas pessoas rindo ao vivo. Para mim é a melhor coisa do mundo. É o que eu sei fazer e aquilo que para que fui feito. Amo escrever e escrever é uma das coisas mais poderosas que existem, mas atuar é uma coisa que está em mim. Amo atuar.
Mas, geralmente, quando se vê de fora, dá muita aflição como diretor assistir à peça com outras pessoas fazendo o seu texto. Mas, neste caso, fico muito tranquilo. Dou risada ainda. Elas tomaram para elas. Elas tomaram os textos para elas e fazem aquilo com muita naturalidade, muita tranquilidade. Consigo divertir-me. Não é tenso para mim. Até esqueço que o texto é meu.
Falámos há cerca de um ano, devido ao regresso do 'Histórias do Porchat' a Portugal. Foi um bom regresso?
Foi muito bom. O povo português recebe-me com muito carinho. Sinto-me como se estivesse em casa, de verdade. Fico muito feliz ao ver que o público do meu espetáculo são 80% portugueses. Há muitos brasileiros, claro, mas muitos portugueses. Estou muito na esperança de que esses fãs, que gostam do meu trabalho e dão risada com aquilo que eu faço em cena, vão também assistir às meninas para darem risadas delas. Os textos são meus, a direção é minha, mas elas estão muito potentes.
No fim das contas, é para dar risada, para se identificar. Não importa se mora no Brasil ou em Portugal, você vai-se identificar com estas situações e vai dar risada. É aquilo que a Júlia sempre falou: ou você é ou conhece alguém que é aquilo. E, no fim das contas, é isso que o público quer: ir lá, ficar uma hora dando risada, sair de lá para comer a pizza. Em Portugal, as pessoas saem para comer coisas mais gostosas, mas no fim é isso.
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