Os 'trens da felicidade' que levaram 70 mil crianças pobres para viver com famílias mais abastadas na Itália

"Foi um dia de desespero, para as crianças e para as mães."
É desta forma que Bianca D'Aniello relembra o momento em que, com 10 anos de idade, ela embarcou em um dos chamados "trens da felicidade".
O ano era 1947. Eram evidentes os estragos causados pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945) na Itália, durante o regime fascista de Benito Mussolini (1883-1945).
A pobreza se intensificava, principalmente no sul do país, em pleno período de pós-guerra. E os trens da felicidade surgiram como uma tentativa de melhorar a situação das crianças que viviam literalmente na miséria.
Ela e outras 70 mil crianças pobres atravessaram o país de trem, entre 1945 e 1952. Elas iriam passar uma temporada com famílias em melhor situação financeira, que pudessem dar a elas uma vida melhor, ainda que por um curto período.
O projeto ficou conhecido na Itália como Treni della Felicità, organizado pela União das Mulheres Italianas e pelo Partido Comunista do país. Foi um esforço para melhorar as condições que atingiam aquelas crianças.
D'Aniello não sabia, mas aquela viagem no "trem da felicidade" mudaria sua vida para sempre.
'Não tínhamos água para beber'Bianca D'Aniello foi criada na cidade de Salerno, a 55 km a sudeste de Nápoles, na Itália. Aquela foi uma das regiões mais afetadas pela Segunda Guerra Mundial.
Agora com 88 anos, ela afirma que, quando pensa naquela época, surgem "recordações de sujeira e miséria".
"Não tínhamos água, nem mesmo para beber", relembra ela. "Muito menos para nos lavarmos."
"Em todas as famílias, não havia o que comer. Eu quase morri, meus pulmões ficavam doentes porque não comíamos.
"Não havia nada e as crianças contraíam tuberculose", recorda ela, em entrevista ao programa de rádio Witness History, do Serviço Mundial da BBC.
Seu pai morreu com 40 anos de idade, deixando sua mãe viúva, com ela e mais sete filhos para criar.
"Ninguém ganhava salário em casa... nós nos cuidávamos como podíamos", prossegue D'Anello.
"E, no pior dos casos, você só esperava a morte. Porque, na época, as mães tinham a sensação de que seus filhos mortos não sofreriam mais."

A fome era outra presença constante. D'Aniello conta que, antes do fim da guerra, as crianças chegaram a comer grama, quando podiam encontrá-la.
"Havia um governo fascista na época de Mussolini e cada família, conforme a quantidade de filhos que tivesse, recebia um pedaço de pão", segundo ela.
"Havia um carro com cupons, você ia até a loja e, conforme os cupons que tivesse, eles davam uma fatia de pão."
"Quando havia água, naquela época, as crianças corriam até a fonte, já que o pão embebido em água se expandia", prossegue D'Aniello. Esta miséria transcenderia a queda do regime.
Até que o médico da cidade, Mario del Santo, trouxe a boa notícia: havia a possibilidade de uma viagem que poderia retirar as crianças da sua precária situação.
Eles só precisariam pegar um trem em direção ao norte do país.
A iniciativaTeresa Noce foi uma das líderes do Partido Comunista italiano e uma das promotoras desta campanha de solidariedade.
"Os pedidos chegavam de toda parte", contou ela sobre o projeto, segundo a revista italiana il Mulino. "Havia muitas crianças famintas. O clima estava ficando frio e úmido e não havia carvão. Havia muitíssimos casos lamentáveis."
"As crianças dormiam em caixas de serragem para se aquecer, sem lençóis, nem cobertores. [...] Crianças sujas, cheias de crostas e piolhos."
Foi assim que nasceu em Milão, no norte da Itália, a ideia dos "trens da felicidade". Nas mãos de Noce e da União das Mulheres Italianas, ela se tornou realidade com o apoio de pessoas de diferentes localidades, que se dispuseram a receber milhares de crianças.
A cidade de Reggio Emilia foi a primeira a se oferecer a acolher 2 mil crianças, logo seguida por Parma, Piacenza, Modena, Bolonha e Ravena.
O primeiro trem, com 1,8 mil crianças, saiu em 16 de dezembro de 1945, de Milão para Reggio Emilia. Seria o primeiro de muitos.
Nos anos que se seguiram, a ajuda conjunta de diferentes organizações civis e políticas fez com que a iniciativa se ampliasse por toda a Itália, com especial ênfase no sul, onde vivia Bianca D'Aniello.
A despedidaComo muitas outras, a mãe de Bianca viu nos "trens da felicidade" uma oportunidade de oferecer uma vida melhor para seus filhos.
Em um dia no ano de 1947, ela preparou a menina e sua irmã menor, Ana Maria, para empreender a viagem.
"Minha mãe me mandou fazer um vestidinho", relembra Bianca D'Anello. "E eu levava sandálias feitas de papelão."
Ela conta que, na estação do trem, as crianças e suas mães sofriam com a despedida.
"Os próprios funcionários do trem choravam, pois as crianças não queriam se separar das suas mães", segundo ela. "Mas as mães as deixavam partir, com a esperança de um futuro melhor, de uma realidade diferente para elas."

D'Anello recorda a viagem de trem.
"Pela primeira vez, vi árvores, casas, vilas, que passavam com rapidez. Este sentimento tomou conta de mim por completo."
"Eu pensava que o trem não existisse, nunca havia visto", relembra ela, rindo.
Agora octogenária, ela conta que seu rosto e o de sua irmã ficaram pretos com a fuligem que entrava pela janela, da qual não conseguiam tirar os olhos.
Mas logo ocorreu algo inesperado. "Trinta crianças desceram em Belluno e não percebi que minha irmã era uma delas."
Quando D'Anello acordou, logo percebeu que sua irmã não estava mais ao seu lado.
"Chorei muito por Ana Maria, pois minha mãe me havia confiado seus cuidados. Mas eu também era pequena", lamenta ela.
Elas ficariam sem se ver por muitos anos.
'Comi como nunca'Depois de percorrerem mais de 700 km, D'Anello e outras dezenas de crianças chegaram naquele dia à cidade italiana de Mestre, perto de Veneza, onde foram recebidas pela chuva.
A água deixou suas sandálias de papelão em pedaços. E a noite não havia sido fácil, nem para ela, nem para os outros pequenos que viajavam naquele trem.
"Todas aquelas crianças passaram a noite no trem sem seus pais, com medo de que os comunistas fossem comer as suas mãos", relembra ela. "Porque o padre da minha cidade nos dizia: 'Vocês não devem ir para Mestre porque os comunistas comem as mãos das crianças.'"
As cuidadoras que viajavam no trem deram a elas uma bebida quente quando chegaram, enquanto começavam a surgir as famílias que haviam decidido adotar crianças.
Não se tratava, necessariamente, de famílias ricas. Especialistas que estudaram o assunto indicam que as famílias que acolheram crianças, em sua maioria, eram da classe trabalhadora.
É claro que sua situação era melhor que a dos camponeses do sul, mas elas também não tinham dinheiro de sobra.
"Uma senhora, chamada Rosa, se aproximou de mim e me disse: 'que menina bonita, como você se chama?'", relembra D'Anello.
"Ela tentou ser doce e amável, para que eu não tivesse medo, e me perguntou: 'Você quer vir comigo? Temos animaizinhos, patos, um gato, um cachorro...' e me pegou pela mão."
A menina começou, então, a viagem para sua casa nova com Rosa e Luigi, que começou a chamar de "tia" e "tio". E, ao chegar, ela percebeu que eles haviam falado a verdade.
"Havia um cachorro, um gato e coelhinhos recém-nascidos", conta ela. "Todas essas distrações fizeram bem para mim, pois, assim, eu não pensava em mais nada."
"Eu vi aquela casa limpa e bonita, com água na mesa, polenta, pão, guardanapos... coisas que eu nunca havia visto na vida. Comi muitíssimo. Comi demais."
A nova vidaD'Anello passou quatro meses com Rosa e Luigi. Mas o tempo passou voando e chegou a hora de voltar.
"Eu chorava, chorava, gritava, não queria voltar para minha mãe", ela conta. "Eu precisava regressar, pois a regra era que, depois de quatro meses, precisávamos voltar para nossas famílias."
"Mas eu não queria voltar. E não era só eu: todas as crianças choravam porque não queriam voltar para Salerno."
Bianca D'Anello não era a única a resistir à sua partida. Rosa e Luigi também se apegaram a ela, a ponto de não quererem deixá-la ir. Mas a menina voltou para sua mãe.

Não passaria muito tempo até que Luigi tomasse a decisão de ir buscá-la e fazer o possível para que a mãe de Bianca permitisse sua adoção, para que ele a levasse de volta.
"Quando vi Luigi, eu o agarrei pela mão e não o soltei", relembra ela. "Não soltei aquela mão até voltarmos para Mestre."
D'Anello viveu uma vida totalmente diferente da que tinha em Salerno. Ela ficou na casa dos seus novos pais até completar 21 anos de idade, quando se casou.
Diversos livros e pesquisas resgataram a história dos "trens da felicidade".
O romance da escritora italiana Viola Ardone Crianças da Guerra: A História sobre o Trem Italiano da Felicidade (Faro Editorial, 2021) conta a história de um menino que, como D'Anello, foi acolhido por outra família.
Em 2024, a Netflix produziu um filme baseado no livro de Ardone, chamado O Trem Italiano da Felicidade.
Ouça neste link o episódio do programa de rádio Witness History, do Serviço Mundial da BBC (em inglês), que deu origem a esta reportagem.
* Com informações de Natasha Fernandes e da equipe do programa Witness History.
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