Pesos e medidas

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27 de Janeiro de 2025. A Polícia Judiciária deteve um homem suspeito de ter violado uma mulher no quarto de uma pensão na Rua do Benformoso, no Martim Moniz. Tratava-se de um cidadão estrangeiro, de 61 anos, e a vítima era uma rapariga de 24, com défice cognitivo, ausente da instituição de acolhimento onde estava internava, encontrando-se a dormir na rua. Reacções a propósito da violência contra as mulheres? Nenhuma.

6 de Maio de 2025. Um agente da PSP foi atacado por um cidadão de nacionalidade estrangeira com um x-acto, nas instalações da AIMA, no Martim Moniz. Luís Montenegro, Primeiro-ministro, condenou o acto de violência, desejando «rápida e plena recuperação» ao agente policial.

5 de Junho de 2025. Homem de 30 anos ferido após ter sido esfaqueado no pescoço e nas costas na Rua do Poço do Borratem, no Martim Moniz. Não houve reacções.

10 de Junho de 2025. Cinco adeptos do FC Porto foram atacados por um grupo de homens, presumivelmente adeptos do Sporting. Os portistas seguiam num carro que foi atacado com tochas, quatro deles ficaram feridos e a viatura acabou por ficar totalmente carbonizada. Reagiram os presidentes dos dois clubes. Do poder político? Nada.

10 de Junho de 2025. No mesmo dia, três actores de ‘A Barraca’ foram agredidos à porta da sala de teatro, em Santos, Lisboa, depois de terem sido insultados, ao mesmo tempo que eram lançados panfletos onde se lia «Remigração. Portugal aos portuguezes. Defende o teu sangue». Margarida Balseiro Lopes, ministra da Cultura, repudiou a agressão, que classificou de «atentado contra a liberdade de expressão, contra o direito à criação, contra os valores democráticos». Alexandra Leitão, candidata socialista à Câmara de Lisboa, considerou «chocante» o ataque, de que resultou a hospitalização de um dos actores agredidos. José Luís Carneiro, candidato à liderança do PS, repudiou o acto de violência, que classificou de «incitamento ao ódio e à violência», pedindo ao Governo uma palavra de informação e esclarecimento sobre «aquilo que se está a passar e as diligências que estão a ser desenvolvidas por parte das autoridades competentes». Rui Tavares, Mariana Mortágua e António Filipe, respectivamente do Livre, BE e PCP, também se pronunciaram: Tavares pedindo a «mais veemente condenação», Mortágua e Filipe recordando o facto de ter sido retirado do Relatório Anual de Segurança Interna dados sobre organizações de extrema-direita. Todos os restantes partidos, salvo erro, manifestaram o seu repúdio perante a violência praticada n’A Barraca por movimentos de extrema-direita. A imprensa, entretanto, questionou o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, sobre o facto de o Primeiro-ministro não se ter pronunciado sobre este episódio; e o MNE clarificou, dizendo que o caso merece «uma perseguição e punição exemplar», descartando a necessidade de Montenegro se pronunciar, quando a Ministra da Cultura já o tinha feito. Horas intermináveis de comentário e análise encheram sobre este caso encheram as grelhas dos canais noticiosos.

11 de Junho de 2025. Num acampamento na Amareleja, Sancho Cardas matou o filho António a tiro porque este se opunha à tradição cigana, tentando defender uma irmã de 14 anos que estaria a ser obrigada a casar. Cardas está em fuga e é considerado perigoso pelas autoridades. Nenhum responsável político se pronunciou sobre um caso que envolve direitos das crianças e das mulheres.

Não restem dúvidas sobre dois factos. O primeiro é este: todos estes casos de violência são repugnantes, os seus actores merecem desprezo moral e o Estado deve ter os mecanismos próprios de Direito e Justiça para lhes responder, investigando e, sendo o caso, punindo exemplarmente quem os cometeu. O segundo é o seguinte: independentemente dos mecanismos do Estado de Direito (que merecem toda uma discussão à parte desta), nenhuma democracia sobrevive moral e eticamente quando, no espaço de poucos dias, uns crimes merecem destaque mediático e reacções do poder político, e outros não. Ou quando o poder político decide reagir em função do mediatismo que é oferecido a determinados crimes, ou em função do peso eleitoral que tem a classe profissional a que a vítima pertence. Por que razão todos os agentes políticos se manifestam perante um episódio levado a cabo por um grupo de extrema-direita e ao mesmo tempo se calam perante um homicídio levado a cabo por um português de etnia cigana que, além de ter assassinado um filho, queria forçar uma sua filha, menor, a casar-se contra a sua vontade? Por que razão (mais um) caso de violência entre adeptos de desporto é olimpicamente ignorado pelo poder político, mas tratando-se de um agente da PSP até o Primeiro-ministro sente necessidade de vir a público manifestar-se e repudiar a violência? Por que razão o episódio da Amareleja se cinge às páginas do Correio da Manhã? A menina cigana não tem dignidade suficiente ou os desejosos de demonstrar a sua superioridade moral, sempre tão zelosos dos direitos das mulheres, ficaram hesitantes sobre de que lado estar neste caso concreto? É assim tão difícil afirmar que nenhum acto de violência, excepto em casos de exclusão de ilicitude (como a legítima defesa, por exemplo), é aceitável, e que todos eles merecem repúdio e que as autoridades devem fazer o seu trabalho? Não, não é. Excepto numa sociedade que vive mais da exibição da sua superioridade moral, das suas agendas políticas e da sua cobardia do que da coerência e da integridade dos seus valores.

P.S.: Os discursos do 10 de Junho passado foram, acima de tudo, melancólicos e nostálgicos dos últimos 50 anos. A condecoração de Ramalho Eanes, justíssima, acabou por parecer simbolizar, tristemente, o fim de um ciclo que Marcelo Rebelo de Sousa parece não ignorar. Lídia Jorge e o Presidente da República, tendo várias razões aqui e ali, revelaram que, representando eles mesmos a mesmice, não sabem como combater aquilo que pretendem destruir ou lutar pelo que entendem como justo e essencial. O que parece restar a este situacionismo é erguer bancadas de superioridade moral, acenar com a sua bondade e esperar que outra situação chegue para a substituir.

Nota: texto escrito a 12 de Junho.

observador

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