Recuperar a moralidade

É, provavelmente, um dos livros mais comoventes deste novo século. O historiador britânico Tony Judt foi diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica (ELA) em setembro de 2008. Ao jornalista Ed Pilkington, Judt descreveu-se como um homem saudável e desportista de 61 anos, que “sentia uma ligeira falta de ar ao subir as colinas e dava por si a carregar nas teclas erradas quando escrevia, nada mais”. Faleceu em agosto de 2010.
A doença avançou com velocidade e Judt perdeu rapidamente a capacidade de escrever sozinho e, mais tarde, de falar: “Nesta altura, já estamos quase quadriplégicos e condenados a longas horas de silenciosa imobilidade, estejamos ou não na presença de terceiros.” Foi neste momento que Judt recorreu aos “artifícios mnemónicos que os primeiros pensadores e viajantes modernos usavam para guardar e relembrar pormenores e descrições” e escreveu O chalet da memória.
Os vinte e cinco textos que compõem o livro são uma viagem pela sua vida e, acima de tudo, pelo século XX na Europa e pelas inúmeras transformações que ocorreram no Ocidente ao longo das últimas décadas, como o texto sobre as bedders ilustra. As bedders que Judt encontrou quando chegou a Cambridge eram uma espécie de criadas a quem cabia manter os quartos em ordem – segundo o pressuposto de que os jovens rapazes estudantes seriam incapazes de desempenhar essas tarefas em resultado da sua (elevada) condição social.
Nos anos de 1960, a instituição das bedders já estava em tensão com o espírito igualitário dos tempos, e Judt assistiu à grande mudança que ocorreu nos dez anos seguintes quando se tornou professor e lhe coube fazer a mediação entre um grupo de estudantes que tinham sido vistos nus durante a noite nos relvados da faculdade e a bedder, que ficara ofendida com esta falta de pudor:
“Os alunos em questão, vim a saber, eram na sua maioria de escolas públicas: a primeira geração de estudantes de origens modestas em ascensão na escala social. Também isto incomodava a bedder. Uma coisa era ser tratada de modo condescendente por cavalheiros jovens da velha guarda – que, como era hábito, teriam pedido desculpa na manhã seguinte e manifestado o seu arrependimento (…). Mas o novo tipo de estudante tratava-a como uma igual – e era também isto que a magoava. A bedder não era igual aos estudantes; nunca seria. Mas pelo menos tradicionalmente podia exigir, mesmo que fosse apenas durante os anos de estudante, a sua contenção e respeito. De que servia ser uma criada mal paga se isto já não se verificava? Se assim fosse, a relação ficava reduzida a um mero emprego, e nesse caso ela arranjaria melhor na fábrica de conservas.”
Para os jovens estudantes, com a sua mentalidade liberal e igualitária, o problema residia no facto de as bedders serem mal pagas; para a bedder, o problema era a relação ficar “reduzida a um mero emprego”:
“Sem se darem conta, os estudantes papagueavam uma visão capitalista redutora e empobrecida: o ideal das unidades de produção monádicas que maximizam a vantagem particular, indiferentes à comunidade ou à convenção. A bedder sabia que era mais do que isso. Podia ser semi-analfabeta e pouco instruída, mas os seus instintos fizeram com que percebesse, certeira, o intercâmbio social, as regras tácitas que o sustentam e a ética interpessoal a piori em que se baseia.”
É possível captar melhor do que isto a grande transformação do Ocidente no século XX? De como a obsessão com a liberdade individual e a igualdade económica destruiu o código moral comum que tacitamente mantinha o respeito e a honra, apesar das diferenças?
Entre nós, podemos reencontrar a observação de Tony Judt quando discutimos a falta de professores no ensino básico e secundário. Sim, é verdade que os professores viram os seus rendimentos desvalorizados; sim, é verdade que muitos viram os anos de serviço congelados; e sim, é verdade que são sobrecarregados com trabalho burocrático quase sempre desnecessário e, mais recentemente, perdidos com a crise migratória em que tristemente nos mergulharam. Mas não é só isso: o problema maior foi a perda da respeitabilidade social da profissão, o desrespeito (e até a violência) permanente por parte dos alunos, a incapacidade de exerceram a sua autoridade e manterem a ordem. (Estou a generalizar, claro, mas a tentar representar um sentimento maioritariamente expresso.)
É verdade que o rendimento se tornou pouco, “mas pelo menos tradicionalmente podia[m] exigir (…) contenção e respeito. De que servia ser uma criada mal paga se isto já não se verificava? Se assim fosse, a relação ficava reduzida a um mero emprego, e nesse caso ela arranjaria melhor na fábrica de conservas.” Mesmo aqueles que resistem – certamente por amor à profissão – sentem que o que verdadeiramente mudou não é capturável pelo vocabulário económico: é uma mudança fundamentalmente moral.
Essa mudança começou com a grande revolução social de meados do século XX que consagrou o princípio da liberdade individual como o valor político último, pelo que as democracias liberais não deveriam impor qualquer conceção de bem, não deviam privilegiar qualquer conceção moral – deviam ser neutras (assegurando estruturas de liberdade seriam justas, sem impor qualquer bem).
Ao longo das últimas décadas, esta conceção de neutralidade foi apresentada como a grande virtude do liberalismo: consagrava sociedades tolerantes. Mas acabou por dar origem a um discurso permissivo, em que, como chama a atenção António Pedro Barreiro neste interessante episódio do Podcast Trivium, acabamos por ter uma sociedade que concorda em discordar, mas se limita a discutir liberdades sem ter ferramentas conceptuais para dizer que um mal é um mal.
3 A necessidade de um vocabulário moralÉ a este vazio moral – esta situação de anomia, para usar a expressão de Durkheim – que estamos reconduzidos nas sociedades ocidentais atuais. Certos valores liberais são conquistas civilizacionais inegáveis, mas temos de ter a coragem e os recursos conceptuais necessários para dizer que há certas coisas que são inaceitáveis. Que o caminho de permissividade que se fez no domínio das drogas se revelou desacertado; que creches com horário alargado sinalizam um mal social; que aquilo que Lily Philips fez é errado; que o descontrolo dos mais novos – sobretudo das raparigas e a sua sexualização precoce – com os telemóveis-espertos e as redes sociais é um problema.
Como a psicologia ensina, os seres humanos aprendem e crescem por imitação (Aristóteles já o sabia, mas, lá está, os antigos já sabiam quase tudo). Por essa razão, se esvaziarmos o espaço moral levamos os nossos jovens a imitar quem tem mais prestígio (na longa lista de “influencers” atuais) e não quem é o mais virtuoso.
A solução para as sociedades liberais passa por recuperar um código moral – de valores, de respeito, de contenção, de responsabilidade – e um vocabulário que nos permita defender o que está certo e recusar o que está errado. A melhor opção disponível parece ser o regresso aos antigos e ao religioso. Se houver alternativas igualmente boas, devemos discuti-las.
observador