Wallenstein e Medrado: o descendente e o pioneiro

Rafael Medrado chegou a Lisboa às 17 horas de uma segunda-feira e às 19 horas em ponto estava na ACT (Escola de Actores) para começar um curso de representação. “Estava lá também o Manuel [Pureza] que, no intervalo, me perguntou se queria fumar um cigarro”, conta ao Observador. Rafael Medrado acendeu o dito e ofereceu outro ao realizador. “Ele disse: ‘Ah, não, eu não fumo. Só vim cá fora para que me contes a tua história.’”
A ligação foi instantânea, tal como a admiração mútua, com Manuel Pureza a dar logo uma lista enorme de sugestões de teatro, cinema e nomes que o ator brasileiro teria mesmo de conhecer. Nove anos depois, o primeiro dirige o segundo em O Zé Faz 25 — o podcast de ficção que acompanha a investigação sobre o desaparecimento de José Valbom, um jovem de — lá está — 25 anos visto pela última vez na própria festa de aniversário, com episódios novos todas as terças-feiras.
Para Rafael Medrado, O Zé Faz 25 é o exemplo perfeito do trabalho de Manuel Pureza, o realizador. “Ele tem sempre um olhar muito fresco sobre o tempo e sobre as tendências que faz sentido seguir. É uma escolha voltar a saborear uma história através de imagens feitas na nossa cabeça.”
Na história,ele é Guedes, melhor amigo do protagonista desaparecido. “Há uma parte do passado do Guedes que o Zé desconhece e isso também faz com que ele se torne um suspeito. Por ser uma figura tão doida como o Zé, passa a ser também um ser perigoso porque não sabemos do que ele é capaz.”
O ator descreve a experiência como uma espécie de “jogo coletivo”. “Em vários momentos olhei para os meus colegas e estávamos todos a saborear aquilo como se tivéssemos 13 ou 14 anos.” Também Vicente Wallenstein viveu este trabalho — no qual é Delgado, namorado da irmã de Zé — com um entusiasmo diferente dos anteriores.
“O Manuel Pureza] tinha esta ideia de desenvolver uma série quase em formato Cluedo com a narrativa de um crime. Cada episódio seria focado numa das personagens suspeitas desse crime. Chegámos a ter alguns ensaios ainda antes da pandemia para desenvolver uma parte da escrita para que os atores dessem alguns inputs, mas, na minha opinião, ainda bem que não avançou porque acabamos por repescar um formato a que antigamente chamaríamos teatro radiofónico”, explica ao Observador.
O conceito não lhe era estranho já que o avô, Carlos Wallenstein, foi, não só ator, mas também dramaturgo. “Nos anos 70, 80 e 90 chegou a escrever várias peças para a RDP para serem representadas em formato radiofónico.”
Durante a pandemia, Vicente Wallenstein chegou a fazer parte de um grupo — Transmissão — que desenvolveu um ciclo de teatro radiofónico, uma parceria entre a associação de Wallenstein, As Crianças Loucas, e Um Coletivo, associação da Cátia Terrinca. “Com eles em Elvas e nós em Lisboa, acabámos por desenvolver esta programação, uma espécie de festival de teatro radiofónico.”
[o trailer de “O Zé Faz 25”:]
Vicente Wallenstein nasceu em Lisboa em julho de 1995 e dos primeiros anos de escola guarda uma recordação muito vívida. “Quando a minha avó ia buscar-me, apanhávamos um autocarro para casa dela, na Estefânia. Eu delirava sempre com os transportes públicos, tinha um fascínio grande porque a minha mãe ia sempre buscar-me de carro. E era um momento de ligação com a minha avó, que era uma pessoa muito importante para mim.”
Nessa altura, já passava grande parte das viagens a inventar histórias. “Eu era muito introvertido, metido no meu mundo e uma das coisas que fazia era imaginar as histórias das pessoas que via no autocarro. Ficava muito curioso com as figuras das pessoas mais velhas, que me pareciam enormes naquela fase, claro.”
Maria do Bom Sucesso, assim se chamava a avó que está presente em todas essas memórias, era professora de Português e Francês, e estava igualmente ligada ao teatro através do marido — dos quatro filhos que tiveram, um deles é o ator José Wallenstein e outro o músico Pedro Wallenstein.
Com quatro ou cinco anos, Vicente estreou-se em televisão na RTP1, na série Gente Feliz Com Lágrimas, realizada por Zeca Medeiros. Interpretava um dos filhos do casal composto por Miguel Guilherme e Ana Padrão. “A minha avó acabou por me levar a algumas gravações. Aquilo para mim era uma brincadeira, até porque habitava sobretudo a casa da família, não era propriamente uma participação com muitas falas.”
Cresceu rodeado de artistas, nos bastidores do teatro e da televisão. O fascínio foi aumentando com a idade e fazer parte do meio era quase uma inevitabilidade. Aos 11 anos participou numa curta-metragem de Cláudia Varejão e mais tarde fez alguns workshops.
Contrariamente a Wallenstein, Rafael Medrado é o primeiro ator da família. Nasceu em Salvador da Bahia, no Brasil, há 39 anos. Na escola, numa cerimónia de alfabetização — que celebrava o facto de as crianças já saberem ler e escrever —, teve de escolher aquela que via como a profissão do futuro. “Os meus colegas escolheram piloto de Fórmula 1, jogador de futebol e eu escolhi palhaço. Gostava daquela figura que, no espetáculo, era o mais ousado. Escolhi palhaço porque já era uma ideia ligada ao teatro.”
Com o irmão Vinícius, dois anos mais novo, e os amigos do condomínio e da rua, pintava linhas que delimitavam um campo e balizas no alcatrão para poderem passar o dia a jogar à bola. No bairro existia uma oficina de um estofador que era uma espécie de Meca para as crianças. “O dono era um senhor muito querido que nos deixava levar as sobras que tinha. Madeira, ferro, pregos, tecido, tudo servia para as nossas brincadeiras.”
observador