Uruguai: O país onde o ódio não tem chance
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Quando o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva tomou posse há pouco mais de dois anos, o político de esquerda ficou surpreso: a delegação do vizinho Uruguai incluía não apenas o atual presidente Louis Lacalle Pou, mas também dois de seus antecessores: José "Pepe" Mujica e Julio María Sanguinetti. Três presidentes, três partidos, três direções políticas e ainda assim unidos na causa. A contratação causou comoção internacional. “Você consegue imaginar Barack Obama e Donald Trump em uma delegação? Ou Jair Bolsonaro e Lula da Silva?” comentou a mídia brasileira na época. As relações com o vizinho Brasil são pelo menos tão importantes para os respectivos governos em Montevidéu quanto aquelas com o outro vizinho ao sul: a Argentina. E é aí que eles deixam o ego festeiro de lado.
Na época, Yamandu Orsi, prefeito de Canelones, Uruguai, escreveu: “A imagem do Uruguai com o presidente Lacalle Pou acompanhado de Sanguinetti e Mujica me enche de orgulho”. Enquanto isso, o próprio Orsi foi eleito presidente; o político de esquerda substituirá seu popular antecessor conservador Louis Lacalle Pou em 1º de março. A constituição do país sul-americano proíbe a reeleição direta.
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Yamandu Orsi discursa para seus apoiadores após o fechamento das urnas em Montevidéu, Uruguai, em outubro de 2024.
Fonte: Natacha Pisarenko/AP/dpa
A transferência de poder ocorreu sem problemas. Como sempre. “Basicamente, o Uruguai é uma democracia estável com o Estado de direito”, diz Sebastian Grundberger, do escritório da Fundação Konrad Adenauer em Montevidéu, em entrevista a este jornal. "Embora haja algumas mudanças de ênfase na política externa, as linhas gerais permanecem as mesmas, independentemente de a 'Frente Ampla' de esquerda ou as forças conservadoras estarem no poder."
Também há opiniões amplamente contundentes sobre o acordo de livre comércio UE-Mercosul porque o Uruguai é um país voltado para a exportação. “Pode haver mudanças nas atitudes em relação a Israel e no tratamento das ditaduras de esquerda de Cuba, Venezuela e Nicarágua”, suspeita Grundberger. "O novo governo de esquerda será mais crítico em relação a Israel e parecerá mais próximo de Havana, Caracas e Manágua do que o atual presidente."
Dra. Nicolas Saldias, cientista político
O especialista uruguaio Grundberger acredita que "a cultura política do país, acostumada ao compromisso e ao equilíbrio, faz com que, apesar da mudança de governo, seja esperada uma mudança moderada de rumo e ajustes graduais: "A difícil situação majoritária no parlamento também forçará a 'Frente Ampla' a se aproximar repetidamente da oposição."
O Índice de Qualidade da Democracia do The Economist, publicado há alguns meses, vê o Uruguai como a democracia mais estável da América Latina. Embora o país, com cerca de 3,4 milhões de habitantes, represente apenas cerca de um por cento da população da América Latina, uma cooperação equilibrada se desenvolveu ao longo de décadas. As derrotas eleitorais não são questionadas e os resultados das eleições são imediatamente reconhecidos. Isto confere uma certa dignidade ao sistema democrático do país. No já citado Índice de Democracia, o Uruguai ocupa a 14ª posição em uma lista composta por 165 países, liderados pela Noruega, empatados com a Austrália e à frente do Canadá.
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O presidente chileno Gabriel Boric (à direita) realiza uma reunião de trabalho com o presidente eleito do Uruguai, Yamandu Orsi.
Fonte: IMAGO/Aton Chile
“A força da democracia uruguaia repousa essencialmente em um sistema partidário forte que impede o surgimento de líderes populistas e desvios autoritários como vemos em outros países da região”, explica o Dr. Nicolas Saldias, cientista político e membro da Unidade de Inteligência da The Economist, responsável pelo índice publicado pelo jornal EL PAIS. “As pesquisas mostram que os uruguaios são de longe os que mais apoiam o sistema democrático na região.”
Um dos pontos fortes do Uruguai é a crítica ao seu próprio campo ideológico. Ao contrário de outros políticos de esquerda na região, o ex-presidente José “Pepe” Mujica não tem medo de criticar abertamente as ditaduras de esquerda em Cuba, Venezuela e Nicarágua e de exigir respeito aos direitos humanos. Por outro lado, também há críticas ao populismo de direita na América Latina e nos EUA por parte do campo conservador em torno de Lacalle Pou. Quando se trata de proteger a democracia contra ataques externos, a política do Uruguai está unida: Democracia em primeiro lugar.
O cientista político Oscar Bottinelli identificou outra razão pela qual a democracia do Uruguai é tão estável: “O voto obrigatório significa que todos participam”. A tradição mostra que há uma “sacralização da voz”, uma valorização do próprio poder político. Nas eleições parlamentares de 2019, a participação eleitoral foi de 90%, e o número de votos em branco ou inválidos não ultrapassou quatro por cento. “Isso reflete a decisão do povo e dá força ao sistema”, diz Bottinelli.
"O Uruguai foi provavelmente uma das primeiras democracias relativamente estáveis da América Latina e, além disso, construiu um estado de bem-estar social, o que também era bastante novo para o continente no início do século XX", disse o cientista político Agustín Canzani, citado pela mídia uruguaia. Três partidos formam o coração do país. Os partidos conservador e liberal Nacional e Colorado frequentemente formam uma coalizão para formar um contrapeso à esquerda “Frente Amplio”. Apesar do início da ditadura, as três formações sobreviveram a 12 anos de regime militar (1973 – 1985) e se alternaram na presidência desde a redemocratização.
Dessa forma, cada partido, cada força política tem o volante em suas mãos em algum momento. E mesmo quando as duras bancadas da oposição ameaçam, há uma disposição de trabalhar em conjunto, independentemente das linhas partidárias, em projetos considerados importantes para o bem nacional. Na noite da eleição, no final de novembro, o perdedor conservador Álvaro Delgado prometeu ao futuro governo: “Quando se trata do Uruguai, eles contam conosco”.
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