De que fala o lixo?

Encontramo-nos a celebrar o décimo ano da publicação da Encíclica “Laudato Si”. Foi na Solenidade do Pentecostes daquele ano de 2015 que o Papa Francisco, no centro de muitas outras novidades, coloca os humanos a despertarem para uma «ecologia integral» aliada à imperiosa necessidade de «proteger a nossa casa comum», realçando aquele princípio de que tudo se encontra interligado e que a nossa relação com Deus também se estabelece através da nossa relação com a Terra. Sirva esta crónica para evocarmos aquela carta papal que acordou a Humanidade. Terá mesmo acordado?
Todos o sabemos e tê-lo-emos ouvido com frequência. A “Laudato Si” faz-nos ver como «são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenhamento na sociedade e a paz interior.» Faltar-nos-á o sentido da responsabilidade e a ética prática da acção na vã ilusão de que os problemas ecológicos se possam resolver nos areópagos das decisões políticas – internacionais, nacionais ou locais -, mesmo quando podemos ler no coração da encíclica parágrafos que nos desafiam a pensar a nossa «Ecologia da vida quotidiana» traduzida «no nosso quarto, na nossa casa, no nosso lugar de trabalho e no nosso bairro». É aí que muito pode acontecer, que muito acontece e que muito pode contribuir para uma «ecologia integral vivida com alegria e autenticidade».
Encimei esta crónica com a interrogação «De que fala o lixo?». Já se estará a ver a razão.
Sim, o lixo fala. O lixo diz muito. Encontra-se sempre a falar, particularmente nestes nossos tempos. E fala, por vezes, de tal modo que, se ouvíssemos os seus soluços de vida, nos deveria tirar o sono e a paz. Sim, o lixo fala soluçando soluços humanos. Demasiadamente humanos são muitas vezes estes soluços. Se são! Mas, distraídos da vida, fazemo-nos surdos à sua voz.
É logo no vigésimo primeiro parágrafo que na “Laudato si” podemos ler: «A Terra, nossa casa, parece transformar-se num imenso depósito de lixo.» O Papa Francisco enumera aí uma grande variedade de lixo, incluindo os resíduos perigosos, os resíduos clínicos, os resíduos electrónicos e industriais, os resíduos altamente tóxicos e radioactivos. E poderíamos acrescentar com tristeza os resíduos das guerras. Mas fiquemo-nos nós pelos lixos caseiros. São eles que falam mais de nós e da vida que levamos no nosso dia-a-dia.
Sim, o lixo fala e até utiliza a linguagem matemática. E fala-nos da quantidade de toneladas que tão produzidas nas grandes metrópoles do mundo. E fala-nos da percentagem de lixo que cabe a cada cidadão do mundo, ou de um país ou de uma cidade. O lixo do mundo transforma-se num mundo de lixo. E o mundo do lixo é uma biblioteca que importa ler, que importa tratar.
Lixo produzido na nossa casa e lixo produzido na nossa rua. Lixo produzido na nossa rua e lixo produzido no nosso bairro. Lixo produzido no nosso bairro e lixo produzido na nossa cidade. Lixo produzido na nossa cidade e lixo produzido no nosso país. Lixo produzido no nosso país e lixo produzido no país vizinho. Lixo produzido no país vizinho e lixo produzido no continente europeu. Lixo produzido no continente europeu e lixo produzido nos outros continentes. E em toda a Terra e no universo para além dela. Com o lixo daqui e lixo dalém se vai o lixo do mundo transformar-se num mundo de lixo. E o mundo do lixo por aí anda, na terra, nos rios e nos mares. E no espaço. Lixo a que vamos fechando os olhos, só abertos quando surge um problema com os trabalhadores da higiene urbana e o lixo vai ficando apontoado na nossa rua ou à nossa porta.
Humanos que somos, somos produtores de lixo. Importa aprender a geri-lo.
Humanos que somos, de uma civilização que coroa milénios, somos sociedade de consumo e sociedade do desperdício, mas também sociedade de desequilíbrios que deixa vestígios disseminados pelos recantos do planeta de que qualquer um de nós pode ser arqueólogo, observando, descrevendo, interpretando e inferindo a partir desses indícios que são os lixos que produzimos. Inferir e alterar hábitos, pequenos ou grandes hábitos, de que vivemos cada dia.
Em tempos outros, que não ainda os da era do consumismo exacerbado de agora, na aldeia onde nasci, como provavelmente na generalidade das aldeias de então, nem sequer havia contentores para o lixo. Tudo era aproveitado. Tudo era integrado no ciclo de vida. Salvo alguns restos intratáveis, todo o lixo entrava no ciclo vital. O lixo caseiro diário, se não era para as galinhas, era para a vianda dos suínos ou bovinos. E até os ossos e espinhas possuíam destino certo. Os primeiros eram aguardados para satisfação dos apetites dos cães, de casa ou de algum vizinho, e as espinhas constituíam o manjar esperado pelos gatos. Se não servia para os animais domésticos, serviria para a fermentação da palha que iria alimentar as hortas caseiras ou as veigas dos batatais do estio e dos nabais invernios da agricultura de subsistência da Beira que também era a das searas do centeio que o forno comunitário havia de cozer depois de religiosamente preparado em casa pelas mãos delicadas da mulher e mãe.
Foi muito jovem ainda, numa das primeiras vezes que pernoitei em Lisboa, quando vi pela primeira vez um pobre homem, de madrugada, a retirar do contentor do lixo aquilo que ele acharia que tinha para ele algum préstimo. Tudo parecia ser feito ao som do ruído enervante de um eléctrico que, entretanto, subia a rua, despertara o meu sono e me chamara à janela. Escarafunchava ele, escarafunchava, e, de vez em quando, retirava um saco, uma caixa ou um embrulho. Cautelosamente abria e examinava. Depois guardava ou voltava a deitar no contentor. A minha juventude ficou então mais ferida com o meu país. E a ferida ficou a sangrar até hoje. Lá da janela de um segundo andar fiz a minha leitura do lixo daquela rua. E cá em baixo um pobre de Cristo fazia a sua, sem imaginar que alguém o estaria a observar. Com o maior silêncio possível fechei a janela. Sentia-me uma espécie de espião do comportamento de um pobre visto da altura de um prédio coberto com a sombra da manhã a que faltava ainda a luz directa do Sol. Sentei-me na cama a pensar nas injustiças do mundo dos humanos e no significado do lixo. Hoje pensaria antes no significado das nossas lixeiras visitadas por crianças e mães à procura de algum conforto para a vida, como os meios de comunicação social já às vezes nos têm mostrado. Lá muito longe ou ali, bem perto, num recanto do povoado.
De vez em quando, acordamos para a realidade do lixo que produzimos. Basta que um dia nos deparemos com uma greve dos «Trabalhadores da Higiene Urbana». Ficamos então muito incomodados. Com os trabalhadores ou com os serviços camarários, mas nem sempre aproveitamos a ocasião para lermos as mensagens do lixo acumulado.
Há muito a descobrir de tudo o que se encontra para além do lixo: dados, fenómenos, estados dos cidadãos emissores que são os produtores do lixo. O lixo diz muito sobre o civismo dos cidadãos: a produção do lixo, o tratamento que lhe damos e o conteúdo de que enchemos os contendores das ruas, dos bairros, das cidades. Cada contentor é um retrato. Da vida social de quem por ali vive e do civismo do cidadão. Não será preciso dizer mais nada nem referir quem estaciona o carro, abre a porta e despeja na rua as piriscas dos cigarros com que foi enchendo o cinzeiro.
Encontramo-nos à porta dos rios e do oceano. De férias de águas mansas ou de águas agitadas, de água salgada ou de água doce. Férias para quem as puder gozar. E as praias já vão estando preparadas para que os veraneantes mantenham limpas as areias do mar ou do rio. Mas há sempre lixo que prefere adormecer ao som das ondas.
De que fala o lixo? O lixo fala. Se o soubermos ouvir, o lixo é como os profetas. Denuncia e anuncia. Denuncia o ser e anuncia o dever ser. Para quem o souber ouvir. O lixo de muitos, o nosso lixo, se fala de uma sociedade de consumo, denuncia também uma sociedade de desperdício, de injustiça, de miséria e de fome.
De que fala o lixo, afinal? Ontem foi dia da criança. Elas e as futuras gerações têm direito a herdar uma Terra saudável.
Guarda, 2 de Junho de 2025
António Salvado Morgado
Jornal A Guarda