Portugal contra si mesmo

Foram precisos quase 29 anos. Foram precisos quase 29 anos para estar, pelo menos por uns dias, e de maneira consciente, em todos os distritos. Miguel Torga escreveu que “cada qual procura-se onde se sente perdido. Eu perdi-me em Portugal, e procuro-me nele”. Mas esta conquista tem muito menos estremecimento e de desassossego que a prosa do escritor português. É mais fruto do acaso, do “tem de ser”, da circunstância.
A cidade onde estive nos últimos dias parecia um imenso vegetal, acamado, sujo, à espera da sua hora. A cidade onde estive, a capital de distrito que nenhum dos meus familiares ou amigos visitou ainda, sem qualquer remorso ou desejo, parecia-se com a Comala de Juan Rulfo: a cidade deixada à morte pela fome, e onde o sino a defunto parecia soar como o rebater dos carrilhões em festa.
Há quem, certamente, proteste pela agressividade do retrato. E tem razão. Havia, também, evidentes sinais de cosmopolitismo. A certa hora da noite, por exemplo, as únicas lojas abertas eram de tipologia semelhante àquelas, também abertas, em horário paralelo, noutras grandes metrópoles internacionais. Quem tenha passado em Lisboa, Roma ou Londres nos últimos tempos, sabe ao que me refiro.
Não tenho uma visão evangelizadora da contemporaneidade, nem sou prosélita dos incansáveis prodígios da cidade massificada como se todos os lugares tivessem de ter, para nosso bem e glória, esses infatigáveis deslumbramentos que são o “shopping”, o “rodízio de sushi” ou o “brunch”. Nem tão pouco sou o rapaz que protesta sempre que, a partir de uma certa hora, tudo se apaga ou desaparece em certas cidades. Vivo numa e não me sinto arrependido ou rejeitado. Mas aquilo que vi nesta cidade, e noutras ao longo destes anos, é absolutamente desolador. É realmente o “Portugal Profundo”, mas não o “Portugal” que surge nos programas de reportagem onde se procuram “as gentes com gente dentro”, o “povo castiço” que ainda conserva “a verdadeira identidade nacional”. É outra coisa. E não sei se é possível falar de culpa diante destas circunstâncias.
Mesmo quem tem uma visão trágica do recurso a fundos europeus pelo nosso país, acusando-os de serem os promotores do “atraso português”, não pode deixar de, honestamente, entender que, sem eles, muito teria desaparecido. Conheci, por exemplo, uma aldeia cujo polo dinamizador é um centro cultural que derivou da aplicação destes fundos. E depois do que vi não consigo dizer que o dinheiro foi mal gasto, que foi uma forma de dar “pão e circo” às populações, ou, ainda, que talvez tivesse sido bem melhor que certas coisas tivessem desaparecido em favor da modernização. Isso parece-me sempre um falso dilema.
Portugal é um país que se condena a se tornar longínquo, não em relação aos outros, mas em relação a si mesmo. As contas são fáceis de fazer. Do sítio onde vivo à capital de distrito onde estive nos últimos dias, a única opção viável é a viagem de carro. O percurso dura pouco mais de 5 horas. Mas 5 horas era o tempo suficiente para ir de Viana ao Aeroporto do Porto, entrar num avião e viajar para Paris ou Londres, ainda com algum tempo disponível no cronómetro para chegar à porta do terminal, de maneira desafogada, o que implicaria, no caso inglês, ainda ultrapassar a zona de verificação de passaportes. E o mesmo se diga dos habitantes da cidade a que me tenho referido que, com um aeroporto nas proximidades, não se safariam com um registo muito diferente.
Mas não é preciso irmos tão longe. Uma viagem de Viana, que é capital de distrito, ao lugar mais distante do mesmo distrito, em Melgaço, demoraria 1 hora e meia. O mesmo tempo de uma viagem de Viana a Aveiro, onde tenho de atravessar, ainda, o distrito de Braga e Porto. Não sei se estávamos conscientes da desigualdade que isto cria entre cidadãos e no acesso aos serviços fundamentais; da tremenda condenação que isso significa para muitos de nós.
Tudo isto, talvez, seja por motivos pessoais. Se algumas destas coisas fossem diferentes, evangelizar era mais fácil. Mas é triste que Portugal continue, muitas vezes, a ser só algo reduzido a “três sílabas” e “de plástico, que é mais barato”.
observador