Roubar a beleza

A presença da mulher na festa, depois de tudo o que anfitriã me dissera sobre ela, contando-me sobre o seu mau carácter e como lhe tinha roubado dinheiro, matéria até de tribunais, quase questão criminal, a presença da mulher entre mais de cem convivas, recebida com grande amizade e um forte abraço, deixou-me a um canto, a pensar se a anfitriã também teria dito de mim, em telefonemas a outros, isto e aquilo, nem sei o quê, se não teria, acerca de vários dos seus convidados tido telefonemas picantes e razões de ofensa maior, e apenas me convidava para a sua festa, convidava a amiga traidora, convidava a todos nós, porque queria receber muita gente e sentir-se amada no dia dos seus cinquenta anos, ainda que por quem não amava, talvez entre inimigos, ou amigos falsos, talvez fosse apenas uma mulher só.
O seu caso intrigava-me há muito. Conhecera-a na biblioteca, havia vinte e muitos anos, era ela uma rapariga deslumbrante e namorada de um rapaz cobiçado. Dos meus vinte anos, fazia com eles o que sempre fizera e viria a fazer vida fora, escolhendo observá-los longamente, a uma distância, quando estavam em público, sentada na esplanada. Sem se saberem vistos, acompanhava os seus gestos mais anódinos, o modo como se sentavam entre amigos, a forma como descansavam ao colo um do outro, o gesto que faziam a ajeitar o cabelo ou a pôr a mochila às costas, os beijos e abraços apaixonados. Eram a imagem da beleza.
Justiça seja feita, talvez houvesse uma pequena traição no modo como julgava agora a anfitriã, amiga das piores horas, companheira em momentos importantes, mulher algo azeda, é verdade, quando às minhas pequenas conquistas, mas que partilhava comigo a amizade imensa de odiar intensamente os meus ódios, de me deixar ver apenas o lado bom da sua vida, talvez para se sentir invejada, mas deixando-me cheirar a flor da sua felicidade em momentos em que, precisada de ajuda, o pressentimento da alegria alheia me salvaria da pior sorte e tristeza. Talvez houvesse traição da minha parte porque havia roubado, como fizera antes muitas vezes, uma parte da sua juventude dentro de mim, escondida fundo demais para que alguma vez a anfitriã a pudesse reclamar ou recuperar, e esse roubo imaterial cingia-se a esse compêndio intangível de gestos inefáveis, a sua mão jovem sobre uma mesa de café, o seu cabelo louro ao vento, os óculos escuros batidos pela luz, sobre a sua pele de rapariga, ao sol de Junho, a pressa das suas pernas a caminho do metro, o contorno das suas meias altas, desnudando demasiado um joelho, aprendi a ser mestre no roubo desses momentos que o tempo leva, senhora gatuna da juventude dos outros, mesmo quando era ainda muito jovem, quase criança, e quase sempre com o intuito de me deixar apaixonar pelas coisas vistas, a vida em modo de cinema, conheço-a desde que me conheço, talvez por isso seja uma narradora.
Era muito mais velho do que eu, ruço, alto, magro, feio, tinha um queixo pronunciado e o tronco ligeiramente desaparafusado da cintura, os braços compridos de mais, as pernas muito finas, relembro-as com calças ligeiramente largas, nunca levava um caderno nem uma mochila, caminhava a passo estugado, sempre sozinho, a caminho de casa ou de outro lugar, nunca soube qual. Eu tinha quinze anos. E apaixonei-me por ele de o ver passar, sem saber, como hoje não sei, como se chamava, onde vivia, que vida era a sua, sofri de amores pelo homem esbelto que passava na rua, especulando no meu caderno que nome teria, e podiam ser todos, onde e o que estudava, ou onde trabalhava, e podia ser tudo, todos os lugares do mundo, que música ouviria no walkman, onde o levaria o comboio que o via apanhar sempre à mesma hora. Nunca o segui. Apaixonei-me tanto por ele como pela sua passagem à minha janela, via-o do primeiro andar, diante da estação, e aparecia a horas certas, sem jamais notar que o observava. Era todos os homens, a minha primeira personagem.
Mas enquanto o amava e sonhava com os seus nomes e as suas vidas, vivia de volta, retribuído, o gozo de alguma coisa que era dele mas apenas eu via, a sua passagem pela rua e todo o pormenor que a compunha, coisas minúsculas que era aquilo que amava nele, vendo-o da janela, e que ele não fazia ideia que eram suas, como não sabia que eu era, pequeninos elementos da vida, que só vê quem está atento ao invisível e o suga nos seus mais inofensivos elementos, o raio de luz sobre os dedos, o efeito da ganga encarquilhada quando se caminha depressa, o tombar ligeiro do tronco para a frente quando se sobe uma rampa, o ângulo perfeito das pernas quando galgam degraus, as leves manchas de suor na t-shirt, desenhadas pelo calor, nas costas, quase invisíveis.
E também em relação ao passante roubara muito mais do que sofrera, porque aos quinze anos não o teria nem o queria ter, mas queria roubar para mim a vida que transportava o seu corpo em corrida, roubar para mim apenas o seu pressentimento tocado pelos dons da rua e dos elementos — chuva no casaco, o seu olhar desviando-se de um transeunte, o esgar concentrado de quem vai perdido em pensamentos, a levíssima corcunda acentuada nos dias de vento, o salto por cima de uma poça de lama — e o que lhe roubei levei comigo dentro desse frasco secreto onde guardo aquilo que os meus olhos viram, frasco que tem cada um, não sei, mas que tenho, onde o rapaz de passagem é ainda um rapaz de passagem, hoje que deve ser homem dos seus cinquenta e muitos, se é que ainda vive.
Fiz-me de roubar aos outros o que tinham de mais precioso. Chamo-me Carteirista. Tenho, como têm os meliantes, uma sala cheia de perdidos e achados que não me lembro de ter coleccionado — a minha alma. Guardei dos outros os seus momentos mais belos, mesmo àqueles a quem odiei ou me injustiçaram, nutri com eles esta vocação para o roubo, atingi-os com a minha ponta-e-mola, sou a colecção que fui fazendo.
observador