Trump, Marcelo e nós, sem ilusões

Não gosto do estilo de fazer política do Presidente Trump. Não é preciso ser woke ou de esquerda para isso, há muitos Republicanos históricos que também não gostam. Foi o ex-presidente Republicano George W. Bush, e não eu, que descreveu o discurso de posse de Donald Trump, em 2016, como “some weird shit”, que é como quem diz “uma porcaria esquisita”. Ser contra a vulgaridade, a mentira, a ignorância, a ameaça gratuita não me parece ser incompatível com ser-se conservador numa democracia. O populismo, o nacionalismo paroquial, o estatismo, o culto da personalidade, tudo isso tem mais a ver com Perón, Vargas ou Chávez do que com Reagan, Eisenhower ou Lincoln. Mas não confundo gosto com análise, e não confundo análise com política externa.
Em julho de 2024 escrevi: “Os europeus não podem ter ilusões quanto a novembro de 2024. O resultado eleitoral provavelmente será apertado, como tem sido sempre o caso nos EUA nas últimas décadas. Mas neste momento as intenções de voto deixam claro que é provável que Trump vença as eleições.” Também escrevi: “Temos ouvido inúmeras vezes desde a eleição de Trump, em 2016, que não devemos levar a sério a sua retórica radical, certamente ele irá moderar-se.” E avisei que “Trump nunca se moderou verdadeiramente. O que moderou alguma coisa a sua presidência entre 2017-20 foi o facto de haver ainda no seu governo muitos Republicanos moderados que ativamente bloquearam os seus excessos. Mas se Trump for reeleito […] terá uma vasta elite de jovens ambiciosos para nomear para o seu governo que construíram a sua carreira com base na adesão total ao trumpismo radical.” Os factos confirmam esta minha análise. Trump, rodeado de yes men que não lhe fazem frente, multiplica ameaças e processos. São as buscas à casa de John Bolton, um Republicano histórico e seu grande crítico. São as ameaças à NBC por renovar o contrato de um humorista que ameaça o seu frágil ego. São as tentativas de afastar responsáveis do banco central dos EUA porque não gosta das taxas de juros, ou de mudar as estatísticas do desemprego despedindo a responsável das mesmas. A situação chegou ao ponto de o Wall Street Jornal, insuspeito de simpatias woke, escrever num editorial: “a campanha de vingança” de Trump contra os seus inimigos políticos “é ainda pior do que nós temíamos”. Trump parece querer seguir o modelo de república das bananas atribuído a Vargas: para os meus amigos tudo, para os meus inimigos os rigores da lei!
É um problema dos norte-americanos? É, mas também é um problema para todos nós. Os EUA são um grande país, um grande mercado, uma grande potência, representam um quarto da economia global e 40% dos gastos em defesa no Mundo. Qualquer crise séria nos EUA não será apenas interna – recordam-se da crise financeira de 2008? Os custos para a economia global do protecionismo e da incerteza trazidos por Trump só agora começam a sentir-se. Não sabemos o que Trump irá fazer relativamente à Ucrânia. Paz quem não quer, mas em que termos e por quanto tempo? A sua simpatia pública por Putin e outros ditadores legitima preocupação com a fragilidade da ordem global vigente desde 1945.
O que devemos fazer? Não o que fez Marcelo Rebelo de Sousa, falando de Donald Trump como um “ativo russo”. É um ataque público contra o líder de um aliado. É uma acusação grave e sem provas. Não ter sentido institucional, falar a despropósito é sempre mau num presidente, sendo que Portugal tem pouca margem de manobra para este tipo de gafes diplomáticas. Isto poderia dificultar a vida à diplomacia portuguesa e europeia de navegar o trumpismo mantendo o máximo de cooperação útil com um aliado importante, e evitando o bate-boca contraproducente.
No entanto, também não faz sentido a defesa de um alinhamento automático e cego da nossa política externa com qualquer país, menos ainda com os EUA de Donald Trump. O comunismo em Portugal caraterizou-se por uma devoção cega à União Soviética. O PCP ainda padece de um reflexo pavloviano de defesa de qualquer ditadura comunista ou de qualquer ditador que resida no Kremlin. Pelos vistos, parte do populismo nacionalista em Portugal e na Europa quer replicar esse exemplo de seguidismo ideológico cego. O Presidente Trump, honra lhe seja feita, é claro ao dizer que para ele só interessa a América, e os aliados de hoje podem não o ser amanhã. Muitos autodesignados campeões da defesa da nação aparentemente acham que a resposta lógica a isto é os respetivos países alinharem automaticamente com Trump. Podem fazê-lo? Podem, ainda vivemos numa Europa livre. Mas objetivamente isso não é ser patriota ou nacionalista, pelo menos não fora dos EUA, é colocar a defesa de Trump acima da defesa da respetiva nação.
Não sei como irá terminar este segundo mandato de Donald Trump, ninguém pode saber com precisão. Não faço ideia quantos mais anos durará o trumpismo, e os EUA são demasiado ricos, dinâmicos, complexos para permitirem previsões fáceis. Mas independentemente dos detalhes, este mandato de Trump tem tudo para terminar mal do ponto de vista da democracia na América ou dos interesses dos aliados democráticos dos EUA. É evidente que os seguidores de Trump não têm a intenção de respeitar a ordem legal vigente, interna ou externa. São o oposto de verdadeiros conservadores, são revolucionários radicais. Basta ouvir Steve Bannon, o mais interessante ideólogo do trumpismo, com a atenção que ele merece. Bannon defende que Trump deve avançar para um terceiro mandato, o que seria inconstitucional, e governar com poderes de emergência, além de combater o “globalismo”, ou seja, a ordem global construída pelos EUA e seus aliados desde 1945. A questão em aberto é saber até onde conseguirão ir.
Na Europa continua a haver muita gente a não quer ver Trump sem ilusões. Alguns por simpatia pelos slogans e insultos trumpistas, outros porque temem ter de enfrentar a alternativa nada apetecível de deixar de contar com a garantir de segurança dos EUA. No entanto, os factos vão deixando cada vez mais claro que Trump prefere um sistema global assente na força das grandes potências e nos caprichos dos homens fortes que as lideram. Aquilo que ainda o parece conter um pouco são os grandes interesses económicos associados à ordem vigente e o facto de a maioria dos norte-americanos parecerem ainda apreciar o valor das alianças e desprezar ditadores. Veremos se é o suficiente para limitar estragos maiores.
A Europa tem de enfrentar esta realidade. Tem de diversificar com prudência relações e investir – mais, melhor, rapidamente – em inovação e defesa. Os líderes europeus dignos desse nome também terão de ter a coragem de, por vezes, fazer frente ao trumpismo – não a despropósito, mas quando necessário. Trump até parece respeitar a força e querer alguma validação da velha Europa, veja-se a sua obsessão com o Prémio Nobel. É bem possível que não o façam. E se for assim a Europa irá perder toda a credibilidade, mostrando que é fácil de intimidar. Se continuarmos neste caminho é bem possível que o resultado seja os europeus acabarem a apostar para os liderar não em trumpistas a fingir, mas em trumpistas à séria. É natural preferir o original à cópia.
observador