Anne Applebaum: IA não explica a ascensão das autocracias

A historiadora e jornalista norte-americana e detentora de um prémio Pulitzer, Anne Applebaum, afirma, em entrevista à Lusa, que até à data a inteligência artificial (IA) “tem muito pouco a ver” com a ascensão das autocracias modernas.
Anne Applebaum participa esta quarta-feira no 34.º congresso da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento das Comunicações (APDC), que decorre na Culturgest, em Lisboa, com o mote “Business & Science Working Together” (Negócio & Ciência a Trabalhar Juntos), num painel com o diretor-geral da Axians, Pedro Faustino, sobre “What is really behind the new world order?” [O que realmente está por trás da nova ordem mundial.
“Até à data, a IA tem muito pouco a ver com a ascensão das autocracias modernas”, afirma.
As autocracias modernas “têm utilizado com sucesso a tecnologia de vigilância, a manipulação das emoções e dos sentimentos na Internet através das redes sociais” e “é provavelmente verdade que os chineses conseguem seguir os seus cidadãos, tanto em online como offline, utilizando a IA de uma forma que ainda ninguém consegue fazer”, considera.
“E é provavelmente verdade que outros países irão nessa direção, mas, neste momento não é a principal explicação para o seu poder até agora“, refere Anne Applebaum.
Segundo a jornalista e historiadora, “há uma enorme disseminação de desinformação e grande parte dela é paga, especialmente na Europa, principalmente pelos russos, paga e planeada por eles”.
Já os chineses “concentram a sua desinformação em outros lugares, especialmente em Taiwan, mas também em outras partes do mundo, mas, até agora, o principal culpado não são as deepfakes, ou a principal ferramenta não são as deepfakes“, prossegue.
Ou seja, a principal ferramenta tem sido a procura de mensagens “que dividam as pessoas e polarizem a sociedade”, criando não apenas histórias apelativas falsas, mas também falsas narrativas ou narrativas sobre a fragilidade da democracia e das suas próprias sociedades, e a força da ditadura, e investem muito dinheiro nisso, diz.
“Pode muito bem ser, e se tornar verdade, que a IA torne isso mais fácil, mas não é a principal fonte de poder até agora“, sublinha.
Sobre o papel da tecnologia, Anne Applebaum refere que esta “significa muitos coisas diferentes”.
Por exemplo, “os chineses tornaram-se especialistas no uso da tecnologia de vigilância para rastrear os seus cidadãos, não apenas fisicamente, mas também para rastrear o que eles pensam e dizem” e acompanham a Internet chinesa com muita atenção, salienta.
Pode-se imaginar que tecnologia similar esteja a ser usada atualmente nos EUA para beneficiar três ou quatro grandes empresas de Internet, como o Facebook, Meta, Google e algumas outras, adianta. Estas empresas “usam principalmente esses mesmos tipos de tecnologia de rastreamento e comportamento (…) para ganhar dinheiro”, aponta.
“Quer dizer, eles usam para vender publicidade, persuadem as pessoas a permanecerem online por mais tempo, alimentando-as com mensagens emocionais e com raiva e isso é parte do modelo de negócios deles”, sublinha.
Certamente “pode imaginar um governo democrático ou, pelo menos, um político eleito num país democrático a começar a tentar usar essas tecnologias de maneiras ainda mais nefastas para manipular e controlar as pessoas”, mas, neste momento as redes sociais fazem isso com fins lucrativos e com muito sucesso.
“A tecnologia que tem sido mais prejudicial às democracias não é controlada por governos democráticos, é controlada por um punhado de empresas norte-americanas”, remata.
Anne Applebaum considera também que o jornalismo pode estar em perigo, apontando que as tecnológicas determinam o que as pessoas veem, a informação que acedem, e que “em breve, talvez consigam eliminar completamente o jornalismo”.
A jornalista e historiadora dá o exemplo da Google, que está a trabalhar “numa forma do motor de busca com IA que não irá enviar as pessoas para websites específicos, mas em vez disso enviar para resumos provenientes de websites, provavelmente minando ainda mais o modelo de negócio do jornalismo”.
Até porque “são capazes de criar realidades alternativas, são capazes de levar as pessoas em determinadas direções para comprar principalmente (…) porque o seu interesse é comprar produtos”.
“Como é óbvio também tem implicações políticas“, porque num mundo em que as pessoas são classificadas em diferentes identidades “é útil tanto para as pessoas que tentam vender bens de consumo como para os políticos”, salienta.
Agora, “penso que há uma grande questão sobre o ato do jornalismo, ou seja, as pessoas cujo trabalho é ir à procura de informação e sintetizá-la, escrevê-la e disponibilizá-la a outras pessoas. Não sei se esse trabalho ainda terá um modelo de negócio dentro de alguns anos, se ainda haverá pessoas dispostas a pagar por isso”, afirma Anne Applebaum. Trata-se de “uma questão muito, muito real”, sublinha.
“O que temos é um mundo onde as pessoas parecem preferir podcasts, ou preferem vídeos, ou preferem informação que vem do primo que viu nas redes sociais, em vez de jornalismo”, aponta.
Embora possa “conceder que há muitas coisas erradas no jornalismo old-fashioned“, isso significa que não se dá um destaque especial à verificação dos factos ou à informação que provém de uma investigação honesta.
“Em vez disso, teremos rumores, teremos histórias inventadas, teremos impressões ou sentimentos que são transmitidos pelas pessoas e, sim, acho que é um perigo real”, conclui.
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