A bomba que, 80 anos depois, continua a cair no meio de nós

Aquele clarão nunca se dissipou. A partir daquele dia em que uma espécie de sol inverso deflagrou em Hiroshima, desatando uma série de fermentações imprevisíveis, operou-se uma cisão na estrutura da realidade. Qualquer que fosse o mapa astrológico no dia em que nascemos, a partir dali estaríamos condenados a viver sob o signo daquela ameaça. O fenómeno foi de tal modo inesperado e assombroso, que os sobreviventes não puderam evitar que um certo fulgor estético contaminasse as lembranças que lhes ficaram dos horrores com os quais se viram confrontados. Poucos segundos após a detonação da bomba Little Boy, a uma altitude de cerca de 600 metros, uma onda térmica com temperaturas superiores a 4000 °C expandiu-se num raio de mais de dois quilómetros. Esse clarão carbonizou instantaneamente superfícies expostas — e deixou impressas, por contraste, sombras permanentes no betão, nos degraus, nos parapeitos, nas paredes dos edifícios públicos. Aqueles corpos evaporaram-se num instante, mas deixaram no cimento uma silhueta negativa.
De acordo com a descrição de Cormac McCarthy, um dos poucos narradores modernos capazes de convocar um cenário de desolação reminiscente das catástrofes bíblicas, subitamente tudo parecia coberto de ferrugem, e havia carcaças de elétricos carbonizados, parados nas ruas. “O vidro derretera-se nos caixilhos e formava poças no piso de tijolo. Sentados nas molas enegrecidas, os esqueletos calcinados dos passageiros, cuja roupa e cujo cabelo haviam desaparecido, tiras enegrecidas de carne penduradas dos ossos. Os olhos cozidos, arrancados das órbitas. Lábios e narizes destruídos pelas chamas. Sentados nos bancos, a rirem-se. Os vivos deambulavam por ali, mas não tinham por onde ir. Avançavam rio adentro, aos milhares, e ali morreram. Pareciam insectos, já que nenhuma direcção era preferível a outra. Pessoas em chamas rastejavam entre os cadáveres como um espectáculo horrendo num vasto crematório. Pensaram, pura e simplesmente, que era o fim do mundo. Quase nem lhes ocorreu que aquilo tivesse alguma coisa que ver com a guerra. Carregavam a pele numa trouxa diante de si, nos braços, como se fosse roupa lavada, evitando que arrastasse no entulho e nas cinzas”…
Os sobreviventes nem faziam ideia do que caíra sobre eles, e coube ao presidente norte-americano Harry S. Truman fazer o anúncio, no regresso da Conferência de Potsdam, e numa transmissão feita a partir do Atlântico a bordo do U.S.S. Augusta, dando conta ao mundo de que uma bomba atómica fora lançada sobre Hiroshima. “Há dezasseis horas, um avião americano lançou uma bomba sobre Hiroshima, uma importante base militar japonesa. Essa bomba tinha mais poder do que 20.000 toneladas de TNT. (…) É uma bomba atómica. É a domesticação da força fundamental do universo. A força da qual o sol extrai a sua energia foi agora libertada contra aqueles que trouxeram a guerra ao Extremo Oriente.” Fez questão ainda de frisar que, caso o Japão não assinasse a sua rendição de imediato, poderia “esperar uma chuva de ruína vinda do céu como nunca antes se viu nesta Terra”. O líder norte-americano adiantou que Little Boy continha uma carga explosiva equivalente a mais de 20.000 toneladas de TNT, sendo, de longe, a maior bomba alguma vez utilizada na história da guerra.
Três dias depois, os EUA lançaram uma segunda bomba sobre Nagasaki, e o Japão rendeu-se. Não houve mais explicações, e, num esforço de controlo da informação, as autoridades norte-americanas limitaram severamente a divulgação dos factos no terreno, para além da evidência óbvia de que cada uma daquelas cidades foram destruídas por uma única bomba.
As notícias não causaram especial comoção nos EUA. No seu discurso a anunciar o bombardeamento de Hiroshima, o presidente Truman expressou o sentimento da larga maioria dos americanos ao declarar que, com o ataque atómico, os japoneses tinham colhido a tempestade que semearam, aquele ataque era a paga com os juros acumulados dos quatro anos desde o ataque a Pearl Harbor. É bom lembrar que, na altura, o ódio aos japoneses excedia de longe o ódio aos alemães. Uma sondagem realizada em meados de Agosto revelou que 85% dos inquiridos aprovavam o uso das bombas, e, numa outra sondagem feita na mesma altura, 23% lamentavam que os EUA não tivessem tido oportunidade de usar “muitas mais bombas antes de o Japão ter tido hipótese de se render.”
Nos meses que se seguiram, o público norte-americano não foi confrontado com a devastação que as bombas provocaram, e apenas lhe foi dado apreciar as imagens dos cogumelos atómicos e ouvir descrições triunfantes dadas pelas próprias tripulações dos bombardeiros. Foram divulgadas fotografias da paisagem devastada de Hiroshima e Nagasaki em jornais e revistas, mas pareciam mais propaganda ao poderio militar norte-americano. E de resto, depois de anos em que o público foi sendo bombardeado diariamente com imagens de cidades arrasadas — de Londres a Varsóvia, Manila, Dresden, Chungking, entre tantas outras, nada daquilo conseguia provocar uma resposta emocional.
Quem também não nutria a menor simpatia pelos japoneses era o repórter John Hersey, que passara os últimos anos a cobrir a guerra na Europa e no Pacífico, e que se havia referido aos japoneses como “fisicamente atrofiados” e como “um enxame de pequenos animais inteligentes”. Com mais de 1,80 metros de altura, Hersey era uma estampa, formado em Hotchkiss e Yale, teve sempre uma postura humilde, discreta. Vivia em Nova Iorque e tudo lhe parecia correr bem, sendo uma estrela em ascensão nos círculos editoriais da cidade. Tinha 31 anos quando a guerra terminou, e tendo regressado de outro trabalho em Moscovo, acabara de ganhar o Prémio Pulitzer com o romance A Bell for Adano, que estava ambientado no conturbado período de guerra na Sicília.
Era esse o plano, dedicar-se à ficção, tendo já demonstrado a sua competência enquanto repórter. Mas havia ainda a questão das bombas atómicas, nas quais ele ficou a remoer depois de ouvir a comunicação de Truman. Não demorou a dar-se conta das implicações sombrias que estas teriam. Ao mesmo tempo, supôs que um único ataque pudesse ter um efeito imensamente dissuasor, pondo de imediato fim ao conflito. Mas, três dias depois, quando a segunda bomba caiu sobre Nagasaki, entendeu claramente que se tratava de um acto criminoso. Também viu as fotografias que então foram reproduzidas, reconhecendo que se as ruínas eram impactantes, não deixavam de ser “impessoais, como os escombros tantas vezes são”.
Foi preciso esperar algumas semanas até começarem a circular, no Japão ocupado, rumores sobre uma infinidade de casos de doença por radiação, e, a partir daí, aos poucos, foram aparecendo na imprensa ocidental os primeiros ecos desse elemento sinistro e oculto da devastação atómica. As autoridades norte-americanas apressaram-se a negar categoricamente todos esses relatos. No final de agosto de 1945, o The New York Times provava ser tão conivente com as orientações estratégicas da política externa do executivo como continua a ser hoje, e publicou um despacho da United Press vindo de Hiroshima, mas só depois de eliminar as referências ao envenenamento por radiação. Depois de devidamente adulterado, o artigo induzia os leitores num erro grosseiro, passando a ideia de que as vítimas estavam a sucumbir apenas ao tipo de ferimentos sustidos num bombardeamento convencional. Uma nota editorial que acompanhava o artigo ainda assegurava que, de acordo com os cientistas dos EUA, a bomba atómica não teria “quaisquer efeitos residuais na área devastada”.
Se é um facto que pouco tempo após os bombardeamentos, a radiação residual em Hiroshima e Nagasaki desceu a níveis que permitiram o início da reconstrução das cidades, também é verdade que nem dois meses antes, quando levaram a cabo o ultrassecreto teste Trinity no Novo México, os cientistas envolvidos no Projecto Manhattan estavam receosos de que este pudesse incendiar a atmosfera do planeta. Jogaram com a probabilidades, e a verdade é que a construção da Little Boy provou ser altamente ineficiente, e se continha 64 kg de urânio, menos de um quilo sofreu fissão nuclear. Por outro lado, se os efeitos da radioactividade se dissiparam surpreendentemente depressa, os cientistas não faziam a menor ideia do seu impacto a longo prazo, e como dezenas de milhares de pessoas haviam absorvido doses perigosas na manhã dos bombardeamentos, ficando com a saúde seriamente comprometida, muitas delas acabando por morrer. O oficial que dirigira o programa da bomba atómica, o tenente-general Leslie Groves, descartou os relatos sobre a radiação como propaganda. “Acho que a melhor resposta para quem duvidar disto é que não fomos nós que começámos a guerra, e se não gostam da forma como a terminámos, que se lembrem de quem a começou.”
No Outono de 1945, estavam já por todo o lado os relatos que davam conta dos inúmeros casos de doença por radiação. Chamado a depor perante uma comissão do Senado sobre energia atómica, Groves teve ainda a desfaçatez de afirmar perante uma comissão do senado que o envenenamento por radiação “é uma forma muito agradável de morrer”.
Foi então que os EUA viram a oportunidade de reclamar um feito de ordem épica, estavam dominados por uma garrulice e fanfarra heroica, depois de uma vitória moral e militar sobre as potências do Eixo que, na verdade, inspiraram o melhor período da sua influência no mundo, uma esperança que veio a instigar ousadas reformas sociais e económicas, mas tudo isso dependia de um sentimento de orgulho, o qual dependia de não puderem ser aproximados a Hitler na disponibilidade para cometer atrocidades sobre os seus inimigos. Após as bombas terem sido lançadas sobre Hiroshima e Nagasáki, Hersey escreveu que, se a civilização ainda significava alguma coisa, era necessário reconhecer a humanidade dos inimigos. Com o passar dos meses, deu-se conta de que era precisamente este o elemento em falta nos relatos sobre a devastação. Viu uma falha decisiva, e teve a intuição de que estava ali um furo jornalístico sem precedentes.
Com o apoio da The New Yorker, voou no início de 1946 para a China e, a partir daí, conseguiu entrar no Japão, onde obteve permissão para visitar Hiroshima. Esteve lá durante duas semanas, antes de regressar a Nova Iorque para fugir à censura e começar a escrever. O resultado foi uma obra-prima austera, com 30 mil palavras, que descrevia com detalhe a experiência de seis sobreviventes do ataque atómico. Nesse mês de Agosto, aquela revista dedicou um número inteiro à publicação da reportagem. Este teve um impacto imenso, e esgotou de imediato. Einstein mandou comprar mil exemplares. Vários outros títulos de imprensa pagaram para a reeditar, e a editora Knopf publicou-a em formato de livro com o título Hiroshima. O livro foi traduzido em muitas línguas, e venderam-se milhões de exemplares em todo o mundo.
De acordo com William Langewiesche, jornalista do The New York Times, “hoje, o texto existe quase como um artefacto — uma obra fulgurante que, no entanto, perdeu a sua capacidade de abalar, em parte porque as histórias que contém já permeiam a nossa consciência sobre a guerra nuclear”. Mas, entretanto, e para reavivar o interesse na reportagem de John Hersey, há cinco anos foi publicado um livro que ajuda a compreender a influência e o papel fundamental que teve aquela reportagem para sacudir do estupor beligerante e da indiferença não só o público norte-americano como mundial. Em Fallout: The Hiroshima Cover-up and the Reporter Who Revealed It to the World (2020), a autora Lesley M.M. Blume garante que a reportagem mantém a sua actualidade, mesmo se num aspecto já estava datada assim que foi publicada. Em 1946, apenas alguns meses depois da detonação da bomba, “os EUA já tinham começado a desenvolver a bomba de hidrogénio, que se revelaria muitas vezes mais poderosa do que as bombas atómicas lançadas sobre o Japão”.
“Hoje, os arsenais nucleares incluem centenas de bombas vastamente mais potentes do que Little Boy ou Fat Man”, prossegue Blume. “O dispositivo nuclear mais poderoso alguma vez detonado — a chamada Tsar Bomba, detonada pelos soviéticos em 1961 — terá sido, segundo relatos, 1.570 vezes mais poderosa do que o total combinado das bombas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, e dez vezes mais poderosa do que todas as armas convencionais usadas durante a II Guerra Mundial. Estima-se que o arsenal nuclear global actual contenha mais de 13.500 ogivas. Se uma guerra eclodisse hoje, o prognóstico para a sobrevivência da civilização seria sombrio; como disse Einstein, após os bombardeamentos no Japão: ‘Não sei como será combatida a Terceira Guerra Mundial, mas posso dizer com que armas se lutará na Quarta — com pedras.’”
Oito décadas depois, somos convocados ainda para discutir as implicações não só deste efeito tecnológico, como de tantos outros meios que escaparam ao nosso controlo e acabaram por degradar decisivamente as condições de vida no planeta. Blume refere que, se a emergência climática tem dominado os títulos e os debates como ameaça existencial à sobrevivência humana, as armas nucleares são uma ameaça existencial ainda mais premente, e que, de resto, cresce com a insegurança e as crises que as alterações climáticas têm desencadeado. Mas, por agora, foquemo-nos no impacto que tiveram as duas bombas nucleares lançadas pelos EUA.
Em Hiroshima, aquele astro invertido provocou uma fissura no mundo. Os relógios detiveram-se às 8:15 da manhã, dando conta daquele instante suspenso, congelado, como se o próprio tempo tivesse sido atingido, fracturado. “O lançamento da bomba sobre Hiroshima a 6 de Agosto de 1945 marcou o início de uma nova contagem regressiva da história”, assinalou Günther Anders. O governo norte-americano lançara uma bomba de urânio baptizada de Little Boy e coberta de mensagens obscenas dirigidas ao inimigo japonês. Era uma arma experimental e os cientistas que a criaram não estavam seguros de que funcionaria, assim os habitantes de Hiroxima serviram como cobaias. Os que se encontravam directamente sob o hipocentro da bomba foram incinerados, apagados da existência num instante. Terão sido 70 mil as pessoas queimadas vivas, esmagadas ou sepultadas sob os edifícios que desabaram, atingidas por estilhaços e detritos. Nas horas e dias seguintes, outras 50 mil pessoas morreriam na sequência dos ferimentos, e mesmo entre aqueles que supostamente foram poupados à explosão, viriam a descobrir que alguma coisa não estava bem nos seus corpos, e acabaram por sofrer os efeitos do envenenamento por radiação em estado agudo, morrendo nos meses que seguiram. Ao todo, calcula-se que as vítimas ascendam a 280 mil, e mesmo no seio do mais mortífero conflito da história, este nível de devastação provocado por um único engenho lançado do ar tornou claro que os desígnios da guerra se tinham alterado subitamente, passando do domínio e da conquista para o regime da aniquilação. Como cicatrizes no tecido do tempo, foram encontrados tantos relógios presos às 8h15, traçando o instante a partir do qual a linearidade do tempo ficou desfeita, deixando-nos órfãos de continuidade. Esses relógios perduram como simbólicos cadáveres do tempo, e lembram-nos de que a história pode cessar não em séculos, mas num segundo. Parecem recusar todo o tempo que foi contado desde então, deixando claro como estes 80 anos se viveram sob o efeito desse vazio, dessa falência da narrativa. Na perspectiva desses relógios o tempo foi abolido, e, assim sendo, os fantasmas não seriam os que pereceram ali (aqueles que nem sabem que morreram), mas somos nós.
A morte que ali foi dada ao mesmo tempo a tantos, tem esse impudor de algo que nem chega a ser cruel, mas surge com a frieza de algo automático, uma reacção em cadeia que introduz no mundo o pulso da máquina, essa força que transforma seres em números. Podem assinalar-se antecedentes, mas nunca, nada a esta escala. A vida nunca fora de tal modo desprestigiada, reduzida a um elemento estatístico, a um dano colateral numa lógica fria e abstracta. A partir dali, “a guerra que tememos está sempre em curso e nunca acabou, tal como a bomba lançada em Hiroxima e Nagasáqui nunca deixou de cair”, como assinalou Giorgio Agamben. Retomando o debate lançado pelo livro de Karl Jaspers A Bomba Atómica e o Futuro da Humanidade, ao qual vem a impor uma série de reservas, Agamben admite que, “se no passado, como sucedia nos primeiros tempos das comunidades cristãs, os homens elaboravam ‘representações irreais’ de um fim do mundo, hoje, pela primeira vez na sua história, a humanidade possui a ‘possibilidade real’ de se aniquilar a si própria e a toda a vida sobre a terra”. Uma vez que não somos capazes de formar qualquer analogia que esteja ao mesmo nível dessa possibilidade muito concreta da destruição de tudo, aquilo que se tornava claro é que Hiroshima não cabia em nenhuma categoria moral anterior. Mas dois anos antes de surgir o livro de Jaspers já um outro filósofo de origem alemã tinha levado mais longe as suas constatações sobre o impacto da bomba nuclear na visão que o homem faz de si mesmo. Em A obsolescência do homem, Günther Anders defende que “o lançamento da bomba atómica sobre Hiroshima e Nagasaki não marca um episódio da história, mas uma cisão epocal: a passagem de um tempo de ‘um mundo sem o homem’ para um tempo de ‘um homem sem mundo’. O acontecimento não é parte da história, mas o seu ponto final — para a humanidade enquanto tal.”
Desde logo, Anders aponta para o elemento de chantagem, de opressão constante que um futuro desastre nuclear faz impender sobre as nossas cabeças. “A bomba actua não como um meio, mas pela sua simples presença. A sua existência dissolve a história; e cabe-nos lidar com ela, mais do que eliminá-la.”
Parecia que a hora que assinalavam aqueles relógios fora a última, e que daquele momento em diante o tempo deixou de contar humanamente. A nossa imaginação estaria, a partir dali, sempre em atraso face à nossa capacidade de causar um nível de destruição que faz de todos nós seres à deriva. “Com a bomba, o tempo foi abolido. Já não há intervalo entre o comando e a extinção. Neste regime atómico, toda a decisão é ao mesmo tempo uma forma final”, escreve Anders. Passámos a viver sob o peso de um céu que poderia esmagar-nos sem o menor aviso. Algo de inimaginável sacudiu-nos no momento em que o céu desceu e se virou do avesso. Restaram as sombras na parede, impressões negativas de corpos subitamente evaporados pelo calor da explosão, assinalando um tipo de morte a que a realidade ainda não assistira, uma morte que parecia ultrapassar o corpo, deixando a impressão de uma ausência ferindo a realidade. Quem se desse ao trabalho de imaginar o pior, por mais que a sua ansiedade apocalíptica o acicatasse, nunca alcançaria a dimensão alucinatória de um mundo em que mesmo um equívoco pode dar cabo da nossa existência colectiva. Sem fôlego devido à vigilância exaustiva, sem fôlego devido à opressão dessa ameaça difusa, fomos obrigados a ceder, a banalizar aquela ocorrência, e a partir dali, tornámo-nos uma raça em negação. Anders foi quem melhor soube exprimir aquele passo da evolução que foi dado através da guerra, e que veio desorganizar a própria possibilidade da história, uma vez que “o que está em causa já não é um conflito entre nações, mas a sobrevivência da espécie humana como sujeito histórico”.
“Quando se lança uma bomba a partir de alturas incomensuráveis, a realidade deixa de se parecer com realidade; passa a parecer um mundo de bonecos”, vinca Anders. “A imoralidade actual não reside na sensualidade, na infidelidade, na exploração — reside na falta de imaginação. E o primeiro postulado da nossa época é este: amplia a tua imaginação para que saibas o que estás a fazer.” Este autor assinala ainda uma ironia terrível, a forma como a bomba nuclear veio pela primeira a ter um efeito unificador da humanidade, sendo que a primeira vez que nos reconhecemos enquanto tal adveio dessa possibilidade de nos destruirmos todos de uma só vez. “Aquilo que religiões e filosofias, impérios e revoluções não conseguiram — tornar-nos verdadeiramente humanidade — foi ela quem o conseguiu.” A bomba vinha assim criar, pela via negativa, uma totalidade existencial. Ao mesmo tempo, alterava o horizonte da experiência para toda a espécie. “Ela paira como nuvem escura sobre todas as gerações futuras. Não se trata de uma profecia, mas de um facto: a bomba, enquanto aliança tecnológica da humanidade contra si mesma.” Para Anders, o próprio facto de ainda haver vida era um mero acaso, e esta subsistia como um resíduo. No fundo, aquilo que ele prognosticou muito antes de se ter tornado claro foi a profunda crise da imaginação que, hoje, está patente em tantas das contradições que passaram a definir a própria vida quotidiana. Segundo ele mesmo, o elemento essencial da sua análise está naquilo a que ele chama o “desnível prometeico”, ou seja, o desfasamento entre aquilo que podemos fabricar e aquilo que podemos imaginar ou assumir como responsabilidade. A nossa vergonha deixara de se configurar a um nível moral, assumindo uma feição prometeica: envergonhamo-nos por termos fabricado um monstro que não conseguimos sequer imaginar. O desafio que se colocava à consciência surgia deste paradoxo em que os prodígios da técnica iam além dos próprios limites da imaginação, assumindo uma dimensão tanto simbólica como destrutiva que escapa inteiramente ao controlo de quem o produziu. “O político foi substituído pelo apocalíptico”, determinou Anders, e isto porque a bomba atómica não podia já ser encarada como uma arma. “É um aparelho de fim do mundo.”
Desse momento em diante, justificavam-se os piores anseios, uma vez que o terror não vinha da bomba, mas de nós mesmos, da sensação de que somos analfabetos em relação às nossas próprias acções. Em Fallout, Blume refere como uma sondagem recente realizada a três mil norte-americanos revelou que um terço dos inquiridos daria o seu apoio um ataque nuclear de tipo preventivo contra um inimigo externo como a Coreia do Norte, mesmo que isso implicasse a morte de um milhão de civis norte-coreanos. Assim, o verdadeiro escândalo depois do lançamento das bombas sobre Hiroshima e Nagasáki não é tanto o nível da destruição que estas provocam, mas o grau de indiferença que leva uma população a sentir-se legitimada para precipitar o inimigo num cenário de absoluto pavor para afastar esse receio. Por essa razão, o que fica claro é que a explosão em Hiroshima teve uma natureza teológica, vindo abolir o intervalo entre decisão e destino. Se antes da bomba, havia guerra e havia paz, havia combate e havia trégua, depois dela, tudo ocorre em simultâneo, não existe já um território civil. Toda a geografia foi nuclearizada, toda a política se tornou geopolítica terminal.
E o mais tenebroso é o facto de não se poder pensar a bomba como um desastre, uma vez que esta não surge de um erro, mas é o resultado de um sucesso técnico absoluto. A bomba estava grávida de toda a negatividade, assinalando um corte, em que o mal já não vê motivos para se esconder, ou dissimular. Não é um acidente, mas um produto de excelência. O homem nuclear habita o impensável como se fosse a sua casa. A indiferença mais radical tornou-se o código que ele carrega e transmite. Produzimos a morte instantânea e falamos dessa eventualidade não como uma forma de opressão constante, antes prefere-se o termo “dissuasão”. Mas quem dissuade quem? A arma que já não precisa ser usada comprova ser mais eficaz do que a que mata, porque paralisa o espírito. Como anotou Anders, “a dissuasão não é uma estratégia pacífica, mas uma guerra psíquica permanente”. “Enquanto a bomba existir, Hiroshima está em todo o lado. Hiroshima não passou. Hiroshima é o nosso estado.”
Assim, a partir do momento em que deflagrou aquele clarão, aquele feixe de mil sóis concentrados, ficámos capturados pela capacidade da tecnologia, e passámos a viver debaixo de um céu que já não é apenas meteorológico, mas escatológico, como refere Anders. Assim, o que se nos impõe como tarefa essencial é obrigar a consciência a recuperar o atraso face à técnica. “A nossa tarefa é radicalizar a imaginação. Caso contrário, continuaremos a viver como sonâmbulos na era atómica”, adverte o filósofo alemão. Para escapar deste elemento da guerra que preenche inteiramente o horizonte, torna-se necessário inventar uma moral à altura da nossa capacidade de destruição. Até o fazermos não somos mais do que fantasmas que ainda respiram. Os mortos-vivos da catástrofe por vir.
Jornal Sol