Isto não é só em Portugal

O céu está carregado e a temperatura desceu um pouco. Uso o meu italiano enferrujado para perceber como estará o tempo e se preciso de ir comprar um casaco. Em menos de nada, depois de perceber que sou portuguesa, a taxista começa a falar sobre como os preços subiram e os salários estagnaram nos últimos 30 anos em Itália. Florença, diz-me, está demasiado cara, não é como a Lisboa que ela visitou há uns dez anos. Conto-lhe que essa Lisboa também já não é a mesma. O turismo, claro. Em Florença como em Lisboa. “As indústrias aqui quase desapareceram”, lamenta-se. A neta, que está de partida para uma semana de férias com os amigos em Portugal, dificilmente conseguirá comprar casa, apesar de estar na universidade.
Tenho à minha espera a casa de um conhecido de um amigo. Fica mesmo em frente ao palácio dos Medici, com janelas altas e amplas que se abrem sobre a Ponte Vecchio e me fazem acordar de manhã com os sinos da catedral. A casa, um apartamento feito num edifício de pedra que já foi um convento, era da avó. Agora, Frederico arrenda-a a turistas e, com isso, consegue uma vida desafogada, que lhe dá para passar bem os invernos quando não pode fazer os voos turísticos de balão de ar quente que são o seu trabalho de verão.
À porta de casa, no local onde antes havia uma daquelas antigas tabernas nas quais o vinho era vendido através de um orifício na parede, está uma gelataria, onde se concentram grupos de americanos rosados, procurando o frescor dos difusores de água que borrifam a entrada do estabelecimento. Por todo o lado se ouvem as pancadinhas das rodas das malas a rolar sobre as pedras e as explicações de guias turísticos ou os cânticos das excursões de católicos, numa mistura babélica de sons estranhos e de mau inglês. O cenário, feito de edifícios de pedra com centenas de anos, é bem diferente do de Lisboa, as personagens não. Em Portugal, como em Itália, os habitantes locais reduzem-se ao papel de estalajadeiros, em versão mais ou menos gentrificada.
Como durante centenas de anos apenas uns poucos conseguiram ser donos das terras na Toscana, agora os mais jovens dificilmente conseguem comprar uma casa. O problema da propriedade complica-se
O centro da cidade torna-se inabitável. Um café com leite custa €4,50, um croissant misto €6. Sentar-se em qualquer esplanada ou restaurante obriga a pagar uma taxa, que varia entre €1,50 e €2 por pessoa.
À volta, os campos da Toscana estão cheios de grandes propriedades, onde se produz sobretudo vinho e azeite. Os outros produtos, como as amêndoas ou as cerejas, já quase não se produzem. Não seria rentável. Não há quem trabalhe a terra. Um produtor de vinho queixa-se de como é difícil trabalhar com os paquistaneses que ali chegam sem saber como tratar a vinha. “É preciso explicar uma e outra vez.” Mas não há mais ninguém que ali queira trabalhar, muito menos por aquilo que os agricultores estão dispostos a pagar.
As grandes propriedades estão quase todas na mesma família, há centenas de anos. Tirando os terrenos que pertenciam à Igreja e que foram espoliados pelos franceses durante as invasões napoleónicas ou os estrangeiros ricos que foram chegando a partir dos anos 1970, as grandes quintas trocaram pouco de donos. A família Antinori estabeleceu-se ali há 600 anos e é bem o exemplo disso: há 26 gerações que produz vinhos na região de Chianti, quer com as uvas da sua propriedade, quer com as que compram aos produtores da zona.
O pai de Alberto tem quase 70 anos e toda a vida produziu uvas para os vinhos da família Antinori. Mas a vinha que trata há décadas não é sua. É de um americano rico, que lá aparece uma ou duas vezes por ano. Alberto nem sabe bem explicar o que ele faz. “Tem investimentos, fábricas. Trabalham para ele umas 25 mil pessoas em todo o mundo. É dono de quase um quarto da ilha de Santo Domingo”, diz-me, enquanto bebemos um vinho num restaurante no meio do campo aonde todos os anos vai a rainha da Holanda. Alberto já está habituado a cruzar-se com estas personagens. “Um dia, entrei ali”, diz enquanto aponta para uma casa de pedra, “e estava lá uma série de famosos, incluindo o Zuckerberg. Tutti stronzi.” Todos uns cretinos ou uns cocós, segundo as traduções.
Como durante centenas de anos apenas uns poucos conseguiram ser donos das terras na Toscana, agora os mais jovens dificilmente conseguem comprar uma casa. O problema da propriedade complica-se. Em Itália, como por cá, há um êxodo de jovens qualificados, que rumam a norte com os canudos pagos com os impostos do sul e assim desequilibram ainda mais a balança.
Um amigo que ali vive conta-me que leu há pouco uma crónica num jornal italiano na qual o pai contava como a filha, acabada de chegar a Londres para estudar, estranhou quando o dono do restaurante para onde foi trabalhar lhe ofereceu um contrato ao cabo de dois ou três dias de experiência. “Aqui é quase tudo pago em envelopes.” Muitos têm dois ou três trabalhos, mas poucos ou nenhuns descontos.
A Europa divide-se entre um norte próspero, ainda com algumas possibilidades de ascensão social e direitos sociais, e um sul que serve de recreio aos mais ricos e lhes fornece os trabalhadores de que precisam. Mas é só dar uns passos atrás para ver que a escala começa mais em baixo. Há sempre alguém mais a sul do que nós, alguém mais pobre que sonha com o norte. É tudo uma questão de perspetiva. Os de cima, temendo os de baixo, os de baixo querendo subir, numa escala que se estende pelo mundo.
E, acima de tudo isso, um punhado de gente, que não precisa de bússola, nem tem fronteiras que a trave. Os que compram herdades na Toscana ou em Santo Domingo e viajam em jatos privados, sabendo que o mundo lhes cabe no bolso. Alberto vê isto há décadas. “Se eu tenho uma casa, se tenho um punhado de terra, eu sou um problema. Fecho o portão e mando-os passear, não me interessam as regras deles. E é por isso que os jovens não vão ter casa, nem direitos, porque assim não poderão queixar-se e terão de se submeter”, conclui.
Susana, uma engenheira agrónoma italiana que já deu aulas na Dinamarca, também vê uma política pensada para criar quem não se oponha à opressão, quem não reclame direitos. “Não se investe em Educação. Temos em Itália uma falta enorme de professores e as escolas estão cada vez pior. As pessoas sem educação ficam alienadas, estão alheadas da realidade política”, queixa-se, enquanto me explica, a mim e a uma sueca, que, desde que Meloni chegou ao poder, se começou a pôr em causa o direito ao aborto. “Agora, até já se fala na possibilidade de reverter o direito ao divórcio. Não creio que vá acontecer. Mas a verdade é que antes não se falava nisso e agora sim.”
Sempre que viajo, vem-me à cabeça um poema de Fernando Pessoa: “Viajar! Perder países!” Os versos são sobre a sofreguidão de quem quer ser livre de amarras e fronteiras. Mas quando penso neles, penso sobretudo em como, a cada viagem, ganhamos a capacidade de perceber que o mundo é, afinal, muito mais igual do que parece à superfície. E que as nossas singularidades podem mesmo ser menos esdrúxulas e singulares do que nos parecem por cá. Não, amigos, isto não é só em Portugal.
Visao